Frei Ludovico Garmus, OFM
A cena da transfiguração de Jesus acontece na viagem de Jesus a
Jerusalém, onde seria preso, condenado à morte e crucificado. A viagem
começa em Cesareia de Filipe, no extremo norte da tetrarquia de Herodes
Filipe, onde Jesus faz uma pergunta crucial aos discípulos sobre sua
pessoa e missão: “Quem as pessoas dizem que eu sou?”. “E vós, quem
dizeis que eu sou?” Pedro, em nome seu e dos discípulos confessa Jesus
como o Cristo, o Messias tão esperado pelo povo. Pedro, certamente,
pensava num Cristo, descendente do grande rei Davi, portanto, um Messias
rei, que haveria de expulsar os dominadores romanos, instaurar um reino
de justiça e reformar a religião judaica. Por isso pôs-se a repreender a
Jesus quando ele começava a ensinar aos discípulos como seria a sua
missão como Messias: “O filho do homem devia sofrer muito, ser rejeitado
pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, que devia ser
morto e ressuscitar depois de três dias”. Jesus, porém, olhando para os
discípulos, repreendeu a Pedro e chamou-o de Satanás, porque tentava
desviá-lo da missão que o Pai lhe deu: “Tu não tens senso para as coisas
de Deus, mas para as dos homens”.Na sequência vem um convite de Jesus dirigido a quem deseja segui-lo a
renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz, a por em risco a própria vida
para salvá-la. E a viagem de Jesus rumo a Jerusalém continua, Jesus na
frente, seguido pelos discípulos. De modo que “seis dias depois” chegam
aos pés de um “monte alto e afastado”. Jesus gostava de lugares assim
para rezar, para estar a sós com o Pai do Céu. Mas desta vez leva
consigo três dos discípulos mais achegados: Pedro, Tiago e João. No
passado, Moisés foi convidado a subir sozinho o monte Sinai, a fim de
receber de Deus a Lei. Agora Jesus convida alguns discípulos para o
acompanharem. Eles não sabiam o que ia acontecer. Mas Jesus os estava
convidando a mergulhar com ele no mistério de seu Pai. Quis assim
levantar um pouquinho o véu que encobria o mistério de sua identidade e
de sua missão como Messias.
Marcos é sóbrio ao descrever a transfiguração, chamando a atenção
apenas à extraordinária brancura das vestes de Jesus. Mais importante é o
que diz sobre as figuras que aparecem em companhia de Jesus:
“Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus”.
Moisés, depois de libertar o povo do Egito, foi convidado por Deus a
subir ao monte Sinai (Horeb). Foi envolvido pela nuvem que encobria o
monte Sinai. Mergulhou no mistério de Deus durante quarenta dias e
quarenta noites. Ouviu tudo o que Deus queria comunicar ao povo e pôs
por escrito nas duas tábuas da Lei. Moisés estava acostumado a se
encontrar com Deus e vivia na sua intimidade. Quando voltava para junto
do povo depois destes encontros com Deus, ficava com o rosto marcado com
um brilho extraordinário. Por isso, ocultava o rosto com um véu. Sobre
Moisés o próprio Deus falou assim: “Ele é um homem de confiança em toda a
minha casa. Com ele falo face a face, às claras e não por figuras; ele
contempla o semblante do Senhor” (Nm 12,7-8).
Elias é o profeta que recebe mensagens de Deus e as comunica aos reis
e às pessoas. É o profeta que teve um encontro especial com Deus no
monte Horeb, o monte em que Deus havia revelado os dez mandamentos a
Moisés. Elias e os profetas são pessoas que têm uma intimidade
particular com Deus. São pessoas que intercedem junto a Deus em favor do
povo e recebem diretamente de Deus as palavras que devem comunicar ao
povo em seu nome. São pessoas que mergulham no mistério de Deus.
Estes dois personagens estão conversando com Jesus, assim como
estavam acostumados a conversar com Deus. Jesus, para nós cristãos, é o
Filho de Deus. Portanto, estão conversando com o Filho de Deus.
Certamente, gostaríamos também nós de entrar nesta conversa ou de saber
qual era o assunto sobre que conversavam. Marcos não nos revela o
assunto da conversa, mas Lucas diz que “falavam de sua morte, que teria
lugar em Jerusalém”. A cena era tão bonita que os discípulos até
esqueceram o detalhe da morte da qual Jesus lhes falava e que o esperava
em Jerusalém. Levado pelo entusiasmo, mas também pelo temor diante da
visão sagrada, Pedro propõe a Jesus: “Vamos fazer três tendas: uma para
ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Foi só Pedro dizer isso,
esquecendo o destino trágico do Mestre em Jerusalém, e a maravilhosa
visão sumiu, encoberta por uma nuvem de sombra. O véu do mistério que
envolvia a Jesus foi erguido apenas um pouquinho, mas logo tudo se
recolhe ao mistério da nuvem. E desta nuvem ressoou uma voz, explicando o
que acabavam de ver: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”
Jesus era o filho amado, querido de Deus, apesar da morte que o
aguardava em Jerusalém. Mas seu destino final não seria o da morte e sim
da glória da ressurreição. Aos discípulos, a todos nós, cabe escutar,
ouvir bem os ensinamentos e explicações que o próprio Jesus está dando
sobre sua missão e sobre a missão de cada cristão: que o Filho do Homem
vai ser rejeitado pelos chefes religiosos, vai ser morto, mas ao
terceiro dia vai ressuscitar; que o discípulo deve tomar a cruz todos os
dias e segui-lo; que para ganhar a vida é preciso saber perdê-la por
causa de Jesus e do Evangelho. Assim como os judeus escutam as palavras
de Moisés e dos Profetas, agora os discípulos de Jesus devem também
escutar e seguir as palavras e ensinamentos de Jesus. Para entender o
que se passa no mistério da nuvem, símbolo do mistério de Deus, é
necessário agora ouvir com fé os ensinamentos do próprio Jesus. É destes
ensinamentos ouvidos e praticados no dia a dia da vida cristã é que vai
brotando e se aprofundando o conhecimento de Jesus Cristo.
Terminada a visão, ao descerem da montanha, Jesus proíbe de falar aos
outros, o que acabaram de ver e ouvir. “Até que o Filho do Homem
tivesse ressuscitado dos mortos”. Diz o texto que eles obedeceram a
ordem, mas entre si se perguntavam o que significaria “ressuscitar dos
mortos”. Era difícil entender que Jesus como o Messias, confessado por
Pedro e esperado por todo o povo, como o descendente real de Davi, não
tomaria o poder em Jerusalém, como imaginavam. Mais difícil ainda era
compreender que Jesus, após sofrer a morte, haveria de ressuscitar; que
para ganhar a vida era necessário perdê-la. Era cedo demais para
entender tudo isso. Somente seria possível uma compreensão mais exata da
pessoa e da missão de Jesus depois de sua morte e ressurreição, e da
experiência de sua presença viva na fé da comunidade pós-pascal. Era
preciso escutar o que o próprio Jesus estava dizendo aos discípulos e
diria, no futuro, no seio das comunidades cristãs que anunciavam e
viviam a sua boa nova.
* Frei Ludovico Garmus é da Ordem dos Frades
Menores, doutor em Exegese Bíblica, atualmente leciona Exegese III:
Pentateuco, Exegese IV: Livros Histórico, Exegese V: Livros Proféticos,
Exegese VI: Livros Sapienciais na Faculdade de Teologia – ITF.Fonte: http://www.itf.org.br/transfiguracao-mc-92-10.html
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