domingo, 8 de junho de 2014

A moral do prazer e o imaginário “consumista” contemporâneos

Por Jurandir Freire Costa*
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/atualidade/a-moral-do-prazer-e-o-imaginario-consumista-contemporaneos/
A tendência da cultura atual de trocar o prazer dos ideais e sentimentos elevados pelos prazeres sensoriais é o principal trunfo do imaginário consumista. As pessoas passam a depender cada vez mais da diversidade e da constância dos objetos para ter prazer, os quais, uma vez adquiridos, já portam o signo da obsolescência e perdem o potencial de estímulo.
 1. Imaginação e desejo “consumistas”
Vou abordar o tema proposto no que tem de mais próximo da disciplina a que me dedico: subjetividade e cultura. Nesse sentido, a primeira observação a ser feita é que a concepção de sociedade regida pela economia de mercado é tão imaginária quanto qualquer outra do gênero. Dizer que uma concepção é imaginária não significa dizer que ela é impotente para alterar a realidade. Ao contrário, boa parte do que condiciona os ideais de vida e as condutas cotidianas é crença imaginária. Imaginário não é sinônimo de “ilusório”, mas do que não tem existência independente da imaginação. Ou seja, diferentemente das coisas materiais, que independem dos desejos e aspirações humanos para existir, as crenças culturais são produtos de nosso modo de agir e dar sentido a nossas ações.
Assim, a sociedade de mercado, como qualquer artefato cultural, depende das atitudes e disposições psicológicas dos indivíduos para agir e pensar “como se ela existisse”. As disposições e atitudes que contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são, em linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve se deixar seduzir pela propaganda de mercadorias; 2) deve possuir uma identidade pessoal flexível, compatível com as novas relações de trabalho; 3) deve estar convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões a satisfação em curto prazo, em detrimento de satisfações que exigem projetos de longo alcance.
As três características são indicativas da maneira como estamos nos relacionando a) com o mundo dos objetos, b) com nossa história pessoal e c) com nosso corpo. Analisemos cada uma em particular. Tomemos a primeira, a relação com os objetos. Para que o mercado funcione é preciso que o sujeito esteja sempre disposto a adquirir os novos produtos criados pela indústria. A isso se costuma chamar “consumismo”. A palavra consumismo, entretanto, é inadequada para designar o hábito econômico ao qual se refere por dois principais motivos: primeiro, por nos fazer crer que consumimos coisas que, de fato, compramos; segundo, por dar a entender que somos todos iguais diante da possibilidade de comprar mercadorias produzidas e vendidas em larga escala.
Na verdade, as únicas coisas que consumimos são substâncias metabolizáveis como alimentos, fármacos etc. Por conseguinte, ao empregar a palavra consumir, querendo ou não, estamos salientando nossa condição de organismos físicos naturais. Desse ponto de vista, obviamente, somos todos razoavelmente iguais, dado que nossas necessidades biológicas são razoavelmente idênticas. Entretanto, se olhamos o consumo como equivalente a poder de comprar, não é isso que acontece. Comprar não é uma ação regida por necessidades biológicas, mas um ato com implicações sociais. Diante de atos desse tipo somos todos diferentes e desiguais.
Adquirir mercadorias por meio de compra já define “quem é quem” no universo social. A maior parte da população tem um poder de compra extremamente reduzido e alguns, para possuir o que desejam, roubam ou furtam. Os chamados objetos de consumo, dessa forma, nem são consumíveis nem estão igualmente disponíveis para todos os indivíduos. A produção de objetos é seletivamente organizada de maneira a ser seletivamente distribuída pelos que têm muito dinheiro, pouco dinheiro ou nenhum dinheiro.
Os dois primeiros grupos, os dos compradores, estão incluídos na sociedade e, por isso mesmo, são os defensores e propagandistas da ideia de mercado como uma realidade independente dos hábitos individuais; o terceiro, formado pelos excluídos da economia e da sociedade, é diretamente estimulado a possuir o que não pode comprar e indiretamente incitado a se apropriar de forma criminosa do que é levado a desejar. Consumismo, portanto, é o modo que o imaginário econômico encontrou de se legitimar culturalmente, apresentando as mercadorias como objetos de necessidades supostamente universais e pré-culturais, e ocultando, por esse meio, as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais compradores.
Pode-se perguntar, porém: por que as pessoas se deixam convencer por crenças racionalmente inconsistentes, quando não disparatadas? A resposta usual aponta para a influência da publicidade e da moda. A publicidade e a moda, diz-se, criam “desejos artificiais”, que, pela repetição e pela sedução, são integrados ao repertório de aspirações dos sujeitos. Há algo de verdadeiro nessa afirmação. Mas não da forma como é entendida de modo corrente. Em primeiro lugar, não é verdade que nos comportamos como compradores sonâmbulos, manipulados pelo “eixo do mal” da publicidade e da moda. Essa imagem pejorativa dos sujeitos não se sustenta em nenhum argumento empírico ou teórico. As pessoas, em geral, sabem o que estão fazendo ao sair de casa para comprar objetos em supermercados, lojas, butiques ou centros de compra. Ao comprar, estão adquirindo o que julgam importante possuir, por uma ou outra razão. Se essas razões são moralmente reprováveis por muitos, esse é outro problema. O que não se pode mostrar é que o hábito de comprar produtos industriais seja uma “compulsão” irracional por possuir “coisas supérfluas”. Se assim fosse, nossa sociedade teria se transformado em um imenso consultório psicológico-psiquiátrico, o que é manifestamente inverossímil. Em segundo lugar, nem tudo que compramos nos foi apresentado pela publicidade. As drogas ilegais são um exemplo gritante de objetos industriais consumidos em grandes proporções que têm sua venda e sua publicidade juridicamente proibidas. Em terceiro lugar, mesmo admitindo que a moda pudesse nos obrigar a fazer coisas das quais não estamos conscientes, ainda restaria explicar por que acreditamos que “comprar” é o mesmo que “consumir”.
Esse é o ponto que pretendo explorar. Por que nos deixamos convencer de que somos consumidores, a ponto de criar códigos de defesa específicos e a assumir alegremente tal identidade social? A explicação padrão para esse fenômeno diz o seguinte: comprar se tornou equivalente a consumir porque o ritmo de produção das mercadorias nos obriga a descartá-las depois de um breve uso. Consumo é uma metáfora que alude à rapidez com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos. Ou seja, tratamos os objetos industriais como tratamos substâncias que se prestam à reprodução dos ciclos biológicos, donde a assimilação do ato de comprar ao de consumir.
A explicação elucida o “quê”, mas não o “porquê”. Entendemos o sentido metafórico da palavra consumo aplicado ao ato de comprar, mas não as causas do hábito que o tornam inteligível. Por que os sujeitos adotam atitudes consumistas se podiam se conduzir de modo diferente? A resposta usual é, nesse caso, decepcionante: por causa da moda! A moda, no entanto, não é um fenômeno moderno. Moda e propaganda existem desde o início do capitalismo industrial. A réplica a isso é que a produção em larga escala ainda não existia. Depois das grandes revoluções tecnológicas e econômicas, a produção capitalista, para ser escoada, teve e tem de ser vendida em um fluxo contínuo. Os indivíduos, portanto, têm de comprar as mercadorias para que a máquina do lucro não pare. Entretanto, o que significa a expressão “ter de comprar”? Não conhecemos, no Ocidente capitalista, casos de pessoas arrastadas à força para adquirir objetos industriais. É claro que não, pode-se argumentar contra! Os consumidores não são fisicamente forçados a comprar o que não desejam, são “seduzidos” pela propaganda comercial!
Voltamos ao ponto zero. O que determina a força do apelo consumista é o fato de os indivíduos se deixarem seduzir pela propaganda de mercadorias. Mas por que eles se deixam seduzir? Por que se deixam converter à prática econômica que trata os objetos como coisas descartáveis? Para avançar na compreensão da questão, é preciso aprofundar as características psicológicas dos sujeitos que são o motor do imaginário do mercado e do consumo.
Sugiro que os indivíduos se deixam seduzir pelo consumismo porque esse hábito atende a reais necessidades psicossociais. Essas necessidades derivam, entre outros fatores, da nova moral do trabalho e da nova moral do prazer. Dito de outro modo, a publicidade não é onipotente. Os indivíduos não são fantoches manipulados pela propaganda, como se costuma pensar. Se grande parte deles se deixa persuadir pela propaganda é porque, em certa medida, encontra na posse dos objetos industriais um meio de realização pessoal. Essa aspiração à realização é o motivo do anseio pelos objetos ditos de consumo. Vejamos, assim, como as morais do trabalho e do prazer contribuem para a produção do desejo de consumir.
 2. Indivíduos desenraizados e demanda por novos produtos
Observemos, inicialmente, a nova moral do trabalho. As mudanças nas relações de trabalho foram bem estudadas por Richard Sennett em A corrosão do caráter (Rio de Janeiro, Record, 1999). Segundo o autor, as transformações econômicas das três últimas décadas alteraram a tradicional imagem do “trabalhador”. Os indivíduos, afetados pela competição crescente por empregos inseguros, começaram a adaptar suas condutas psicológicas ao perfil social do “vencedor”. O “vencedor” deve ser maleável, criativo, afirmativo e, sobretudo, superficial nos contatos pessoais e indiferente a projetos de vida duradouros. Para ganhar mobilidade no volátil mundo do emprego, ele deve aprender a não ter elos sólidos com família, lugares, tradições culturais, antigas habilidades e, por último, com o próprio percurso biográfico. Sennett define essa nova identidade como a do indivíduo “desenraizado” e Zygmunt Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade (Rio de Janeiro, Record, 1998), como a do “turista”. O turista ou o desenraizado é o indivíduo que não se fixa em identidades passadas, que vê o mundo como um espaço de circulação permanente e que jamais projeta o futuro a partir das condições de vida presentes. Esse é um dos principais motivos pelos quais o desejo de possuir objetos industriais se acentuou. Os objetos passaram a ser aquilo que o turista pode ter, ao mesmo tempo, de mais estável e mais mutável. De mais estável porque são as únicas coisas que o sujeito transporta consigo onde estiver e para onde for, de mais mutável por serem facilmente trocáveis se a nova condição social de trabalho assim exigir. Em outros termos, a posse de mercadorias permitiu ao indivíduo preservar a necessidade psicológica de estabilidade sem renunciar à elasticidade pessoal exigida pelo mundo dos negócios.
Além disso, os objetos continuaram sendo o que sempre foram desde que surgiram no cenário da economia capitalista, ou seja, a marca do sucesso profissional e social. A aparência do sujeito afluente é determinada pela maneira como se veste, pela qualidade dos objetos de adorno pessoal, pelo tipo de automóvel, de artigos eletroeletrônicos e de objetos de decoração doméstica que possui, pelos restaurantes que frequenta e tipos de esporte que pratica, pelos lugares onde desfruta o lazer, pelas viagens que faz etc. Os objetos de consumo “agregam” valor social aos seus portadores. Eles são o crachá que identifica “o turista vencedor” em qualquer lugar, situação ou momento de vida.
O consumo de objetos, portanto, não se impõe apenas pela invasão da moda publicitária nas vidas pessoais. O aparato de objetos caros e elegantes é o signo, por excelência, da distinção social de seus possuidores. Por isso passaram a fazer parte da identidade pessoal dos mais abastados e, por extensão, da imensa maioria da sociedade. É entendível, assim, que a compra incessante de novos produtos se torne uma “demanda imaginária” tão coercitiva quanto qualquer “necessidade biológica”. Afinal, ninguém se contenta em sobreviver fisicamente, pelo consumo de nutrientes. Somos seres de cultura que não têm apenas fome de pão, mas também de prestígio social. A satisfação de se sentir aprovado e admirado é um item indispensável para o equilíbrio emocional de todos nós.
3. A moral do prazer
Passemos, agora, à moral do prazer, o outro coadjuvante no enredo imaginário do mercado e do consumo. Esse tópico é, sem dúvida, uma criação inédita da cultura atual. A moral do prazer é o maior trunfo do imaginário consumista. Por meio dela, a ideia do consumismo ganha um curioso semblante de plausibilidade. Vejamos de que maneira.
Toda cultura, para permanecer viva, deve abrir canais de satisfação a seus participantes. Satisfação é o estado físico-mental alcançado ao levarmos a bom termo nossas intenções. As formas pelas quais nos “sentimos satisfeitos” são variadas, mas um dos propósitos fundamentais e constantes da existência humana é obter prazer e evitar dor. Os prazeres, por seu turno, são formas de satisfação que se exprimem de diversas maneiras. Podemos sentir prazer em realizar “ações cívicas”, em experimentar emoções sentimentais voluptuosas ou agradáveis, em fruir emoções estético-religiosas, em gozar com sensações corporais de bem-estar e de êxtase etc. Esses e outros modos de satisfação prazerosa são componentes indispensáveis ao funcionamento da cultura e à formação de identidades pessoais.
Cada cultura, no entanto, permite a realização de certas condutas e interdita outras. Uma cultura na qual tudo fosse igualmente possível não seria “uma cultura”. Cultura é delimitação de possibilidades e impossibilidades. No convívio humano existem sempre comportamentos que são incentivados e aprovados e outros desestimulados e condenados. Em nossa época, a grande inovação em matéria de condutas é a busca do ideal de prazer corporal ou do prazer das sensações. Hoje procuramos os prazeres sensoriais como há dois ou três séculos perseguíamos os prazeres sentimentais do romantismo e da vida familiar, os prazeres do reconhecimento pela operosidade e pela honestidade do trabalho, os prazeres da admiração pelos grandes feitos políticos e militares, os prazeres da alma no exercício das virtudes religiosas etc.
Duas observações são, contudo, necessárias, antes de prosseguir. Em primeiro lugar, afirmar que, atualmente, elegemos o prazer sensorial como um ideal nem significa dizer que antes não o usufruíssemos nem que hoje tenhamos aberto mão dos antigos ideais de prazer cívico, sentimental, religioso etc. Agora, como anteriormente, continuamos a buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais. O que mudou foi o valor que passamos a atribuir às sensações físicas prazerosas na constituição das subjetividades. Esse valor foi enormemente inflacionado e veio a se tornar um ponto de apoio privilegiado na constituição das identidades pessoais.
A importância que a boa forma física, a boa saúde, o gozo com drogas ou com sexo tinham na formação psicológico-moral dos sujeitos era, até bem pouco tempo, comedida. No reinado da clássica moralidade burguesa, ninguém era particularmente admirado por ser capaz de se manter belo, jovem ou saudável além do que o correr do tempo permitia. Do mesmo modo, a liberdade sexual que hoje usufruímos era quase impensável há três ou quatro décadas, assim como eram impensáveis a extensão e a intensidade que o consumo de drogas psicoativas veio a ter. O que definia a qualidade moral e o apreço social de uma pessoa era a vida sentimental rica, a excelência na vida pública, a integridade religiosa, as qualidades artísticas ou científicas etc. Os prazeres físicos do corpo eram apenas a matéria bruta que devia ser modelada para dar lugar aos ideais de perfeição moral, intelectual, espiritual ou emocional etc.
Em segundo lugar, ao falarmos de culto às sensações prazerosas, estamos diagnosticando um estado de coisas, e não desaprovando, de forma puritana, tais aspirações. A atitude moralista que se refere à “busca do prazer” como um “pecado secular” me parece equivocada. Essa atitude insinua que o prazer físico é, por si, condenável e que os indivíduos hoje vivem em um eterno festim de comida, sexo e droga. A meu ver, além de imprópria, essa imagem é, principalmente, falsa. Ela é imprópria porque, se os indivíduos decidirem que deverão viver para os prazeres físicos, e isso não vier a destruir os compromissos com o Bem comum, não vejo nenhum bom motivo para que se os desaprove; é falsa porque simplesmente não é verdade que a maioria dos praticantes da moral do prazer sensorial se comporte como o moralismo conservador e pequeno-burguês fantasia que ela se comporta. Por tudo que podemos constatar, o ideal do prazer físico continua sendo um “ideal”, ou seja, algo que se almeja e dificilmente se alcança.
Assim, o problema da felicidade das sensações não reside nos pretensos excessos sensuais de seus partidários – afirmação que ninguém vê ou prova –, mas nas contradições que ela produz. Isto é, esse ideal promete o que não dá e dificulta a participação e o compromisso do sujeito com os objetivos do Bem comum. Essas são as razões pelas quais podemos criticar, do ponto de vista ético, a nova moral do prazer, e não por fantasias despropositadas como as que atribuem aos indivíduos excessos sensuais inexistentes.
Feita a ressalva, voltemos ao ponto central: a relação do ideal do prazer com o imaginário consumista. A moral contemporânea do prazer, como a nova moral do trabalho, dá origem à demanda por objetos descartáveis. Uma diferença, no entanto, separa as duas. No registro do trabalho, os objetos são desejados porque compõem a aparência social do turista ou do desenraizado “vencedor”. Pelo fato de serem portáteis e intercambiáveis, eles se tornaram instrumentos cômodos de exibição do sucesso profissional e social.
Na moral do prazer sensorial, a função dos objetos é outra. O prazer das sensações se baseia fundamentalmente nas disposições físicas do corpo para ser estimulado. Diferentemente do prazer sentimental, que pode durar na ausência dos estímulos sensório-motores, o prazer sensorial depende do estímulo físico imediato e da presença do objeto fonte da estimulação.
A única maneira de fazer o prazer físico durar é prolongar a excitação. Nesse caso, entretanto, o sujeito esbarra no limiar de excitabilidade biológica: se o estímulo for forte e durar demasiadamente, dará lugar à dor; se for fraco, ao desinteresse. Resta, então, ao sujeito recorrer aos objetos como fonte de reestimulação permanente do corpo.
É nesse ponto que o consumo entra no script da felicidade das sensações. O sujeito, para escapar da enfermidade do prazer físico, passa a depender, cada vez mais, da diversidade e da constância dos objetos para ter prazer. Como sem objetos não há prazer e como um mesmo objeto esgota rapidamente sua capacidade de despertar a excitação sensorial, é preciso ter sempre à mão algo com que gozar. Além disso, esse algo deve ser permanentemente substituído, para que o hábito não enfraqueça a intensidade do estímulo e elimine o gozo. Por esse motivo, o ciclo de consumo dos objetos se tornou interminável. Além de procurar objetos próprios à excitação dos sentidos relacionais, ou seja, os cinco sentidos, os sujeitos procuram manter em alta intensidade o gozo sexual, o frisson das experiências motoras violentas e o êxtase sensorial neurofisiologicamente induzido por drogas psicoativas etc.
Os objetos são cada vez mais solicitados a superar os limites da excitação física do corpo. E, graças a isso, começaram a assumir um semblante que nunca tiveram, qual seja, o de objetos consumíveis. A metamorfose ocorreu por dois principais fatores. Primeiro porque é mais fácil imaginar o consumo de coisas que experimentamos sensorialmente do que de coisas que, apenas indireta e secundariamente, excitam nossas sensações. Pensar que consumimos imagens visuais excitantes ou drogas psicoativas é mais verossímil do que pensar que consumimos relógios, móveis, roupas ou automóveis. Segundo porque o impulso para comprar objetos, de fato, se fortaleceu à medida que nos tornamos mais dependentes deles para ter prazer. A insaciabilidade por comprar se acentuou porque o ideal de prazer hegemônico fez do objeto a via real da satisfação pessoal.
Como se vê, o imaginário do mercado e do consumo não se sustentaria sem que contribuíssemos ativamente para sua perpetuação. São nossos ideais de felicidade que nos empurram para a aquisição permanente de objetos que, ao ser adquiridos, já portam o signo da obsolescência. O tipo de satisfação ao qual aspiramos pede uma renovação incessante das fontes de estimulação sensorial. Os objetos são os meios que encontramos para alcançar os fins que desejamos.
 4. Sociedade, classes e ideais
Não saberia responder com segurança à indagação de vocês sobre a apropriação diferenciada da ideologia do consumo pelas diferentes classes sociais. Acho, no entanto, que a atitude consumista não depende do nível de renda. É uma atitude diante da vida, e, por conseguinte, diante dos objetos que se pode possuir. No Brasil, a maioria tem uma renda pessoal ou familiar desprezível, mas, mesmo assim, se comporta como se tivesse uma renda alta, quando se trata de usar objetos com coisas descartáveis.
Não consumir significa perceber os objetos como coisas que devem durar, que devem significar algo mais que a satisfação imediata de necessidades passageiras. Significa adotar diante do mundo uma atitude de cuidado. Significa estar consciente de que a sociedade ou o planeta não são um depósito infindável de recursos que podemos saquear, sem respeito ou preocupação com o que virá depois de nós. Por esse aspecto, não vejo grandes diferenças entre os pobres e os ricos. Os mais poderosos e influentes, pela persuasão ou dissuasão, terminam por impor a quase todos seus ideais de sucesso econômico, apreço social e satisfação psicológico-moral.
Não penso que o fundamental na moral do consumo seja a posse de objetos por meio de compra. É entendível que, hoje em dia, com o progresso tecnológico, as crianças, por exemplo, disponham de mais brinquedos e meios de lazer do que dispunham antes. O problema não está na quantidade de coisas que podemos ter, nem mesmo na quantidade de coisas que podemos acumular. A questão é a atitude irresponsável para com o patrimônio material e moral da sociedade em que vivemos. Ter poucos objetos e tratá-los como os que possuem muitas coisas e as tratam de modo “consumista” resulta na mesma consequência ética: tudo que existe é para ser devorado e jogado fora, pouco importa o efeito desse gesto perdulário.
No início do capitalismo industrial, por exemplo, os indivíduos compravam muitas coisas, se considerarmos o montante de riquezas disponíveis e o desenvolvimento técnico da produção industrial. Se vocês observarem com atenção os costumes das famílias burguesas no século XIX, verão que as casas eram apinhadas de objetos de decoração, brinquedos de criança, sem contar os infinitos adereços do vestuário masculino e feminino. Mas nada disso impedia os sujeitos de pensarem que o que possuíam devia durar. Nada disso impedia os sujeitos de viverem não apenas para si, mas para as futuras gerações de filhos e netos. Nada disso impedia que os burgueses mantivessem vivos ideais de progresso científico, de dignidade do trabalho, de honra familiar, de crença na história, de sentimento de responsabilidade para com a nação etc. Bem entendido, não quero, com isso, idealizar o modo de vida burguês oitocentista. Sei bem que muita coisa disso tudo foi construída em cima de preconceitos sexuais, raciais, religiosos, de classe social ou outros. O principal, entretanto, é o compromisso com o Bem comum, com algo que transcenda nossas vidas passageiras e o fugaz prazer de nossos corpos.
A atitude consumista moderna é dissoluta desses ideais. Essa é sua maior nocividade. Ela rompe o fio da tradição e nada põe no lugar. É uma cultura do imediato, do descompromisso consigo, com o outro e com o devir de todos.
5. Resistências e alternativas
Entretanto, nenhuma construção cultural, por persuasiva que seja, é monolítica. A ideologia do mercado e do consumo não é exceção. Todo poder desperta resistências, como disse Michel Foucault. As resistências suscitadas pelo imaginário do mercado são de duas ordens. A primeira é a resistência pela fraqueza dos excessos; a segunda, pela força da criação de alternativas às ideias dominantes. Como exemplo da primeira, cito os vários distúrbios psicológicos derivados do modo de viver atual. A pressão pela boa forma, pela saúde e pela longevidade vem produzindo, em escala crescente, uma série de sintomas hipocondríacos, transtornos da imagem corporal e síndromes de dependência química. Além disso, o estilo de vida competitivo, a insegurança nos postos de trabalhos e a ansiedade pelo sucesso econômico vêm gerando um rol de sintomas típicos do estresse físico e mental: insônia e dores musculares crônicas, desânimo, depressões mitigadas, síndromes de pânico e fobias sociais etc.
Os indivíduos, com maior ou menor clareza, sabem que o preço pago para ser “vencedor” é extorsivo. Muitos começam a buscar refúgio em práticas corporais, de natureza leiga ou espiritual, que os afastem dos ideais de satisfação que dominam o imaginário do mercado e do consumo. Mesmo sem perceber, esses sujeitos criam focos de contestação ao modo de vida hegemônico pelo simples fato de redefinirem seus ideais de felicidade. Aos poucos, os sinais sociais de superioridade de classe deixam de ter apelo para uma parcela significativa de pessoas para as quais as experiências pessoais de sofrimento acabaram produzindo um relativo distanciamento da moral dominante.
Portanto, se nos perguntarmos quais as perspectivas para as pessoas na sociedade de mercado, diria que são muitas, mas que todas convergem para duas saídas principais: 1) continuar a perpetuar um modo de vida que me parece pobre, por estreitar os horizontes da ação humana em uma só direção, qual seja, a do sucesso econômico, do cuidado obsessivo com o próprio prazer e da indiferença em relação ao mundo; 2) voltar-se para o outro, construir uma sociedade na qual todos tenham direito ao mínimo necessário à satisfação das necessidades elementares, para que, então, possamos ser, de fato, livres para criar tantas formas de sermos felizes quantas possamos imaginar.
Como exemplo de resistência pela força da criatividade, cito o surgimento das preocupações ecológicas e o ressurgimento de preocupação política na modalidade da responsabilidade social. O movimento ecológico vem mostrando quão predatória é a prática do consumismo compulsivo e indiscriminado. O argumento da dilapidação dos recursos naturais do planeta vem conquistando adeptos, que veem no consumismo a inconsequência dos que não conseguem pensar no futuro das novas gerações. Esse movimento, embora incipiente, e muitas vezes cooptado pelos poderosos, vem se afirmando como algo digno de respeito, o que não acontecia há duas ou três décadas. Uma grande quantidade de pessoas, sobretudo as mais jovens, se sente atraída e entusiasmada por profissões que lidam com o cuidado ambiental, e isso é um indício importante de mudanças nas mentalidades coletivas.
No que tange à política de responsabilidade social, é impressionante observar o número de pessoas que vêm se dedicando a trabalhos do chamado terceiro setor. São pessoas com visões de mundo, trajetórias de vida e origens de classe bastante diferentes, mas que encontram nos ideais de justiça e respeito pelo outro um objetivo que merece ser perseguido. Todas elas acreditam que o estilo individualista de preocupação exclusiva com o próprio corpo e o sucesso social não basta para dar sentido à vida. O número de participantes nesse tipo de atividade social cresceu de forma impressionante no Brasil dos últimos 20 anos e torna-se uma opção também para os jovens. Os efeitos dessa nova maneira de pensar ainda são, por enquanto, tímidos, mas tudo leva a crer que estamos diante de uma mudança de hábitos de vida na qual os ideais do Bem comum voltaram a ter o respeito que merecem.
Mas vocês me perguntam como acelerar as mudanças? Obviamente não há receitas. Primeiro porque não acredito em mudanças pensadas por um só. Mudança é uma questão de prática, de experimentação de muitos ou de todos. Segundo porque os próprios horizontes da mudança precisam ser rediscutidos dia a dia. Uma coisa, contudo, me parece importante realçar. Toda mudança, para ser estável, duradoura e produtiva, tem de ser contínua e lenta. As grandes transformações históricas que conhecemos, e que se deram de forma brusca, em meio a banhos de sangue, em geral retrocederam ao que temos de pior. Portanto, a paciência e a persistência são as melhores armas para as mudanças responsáveis e humanamente frutíferas. Ora, o que a sociedade de consumo vem justamente minando por baixo é a confiança que temos na história e em nosso valor como agentes de transformação social.
O grande exercício e o grande desafio que enfrentamos é o de continuar acreditando em um mundo melhor para nós e para as gerações futuras. Sei que pode parecer duro ter que suportar regimes econômicos exploradores e concentradores de riquezas sem pensar em tomadas de poder pela violência. Mas, ao olharmos a história, veremos que as aquisições sólidas que fizemos, em matéria de progresso no convívio social, foram todas construídas com tempo a paciência. Foi assim que mudamos os valores familiares, religiosos, políticos, econômicos, sentimentais, artísticos, morais etc. Não vejo outra saída, exceto recobrarmos a confiança em nosso poder de transformação, como criadores que somos. Repito, no entanto, que para isso é preciso recuar da posição na qual fomos postos, qual seja, a de indivíduos exclusivamente voltados para o próprio umbigo. A mudança, portanto, exige que pensemos que o que todos fazemos no dia-a-dia, em qualquer atividade profissional ou cultural, é importante. O que cada um de nós faz ou diz importa, e importa muito! O mundo se faz de pequenos gestos cotidianos e das grandes crenças que os sustentam.
 1. Nota do editor: Este texto foi editado pelo autor a partir da transcrição de gravação de uma conferência por ele proferida no âmbito do curso Juventude, Cultura e Cidadania, organizado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em parceria com o ISER (Instituto de Estudos da Religião). Foram também incorporadas ao texto algumas das respostas do autor a perguntas formuladas pelos jovens que participaram do curso. Texto também publicado em Regina NOVAES e Paulo NABNUCHI, Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, São Paulo, ed. Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, p. 75-88, e gentilmente cedido para publicação em Vida Pastoral tanto pelo autor como por parte da editora.
2. De agora em diante, evitarei colocar aspas nos termos consumir, consumo, consumismo e consumidor para não sobrecarregar o texto e cansar o leitor. Fique entendido, portanto, que, ao empregar tais palavras, não estarei concordando com seu sentido corrente, mas procurando criticá-lo.
3. Ao utilizar a expressão “prazeres físicos” não estou sendo redundante. Os prazeres corporais são físicos e mentais. Mas, enquanto os prazeres físicos se limitam ao corpo, os prazeres sentimentais podem ser projetados em outros objetos ou sujeitos do mundo ambiente. Especifico, ainda, que o limite entre o físico e o mental é arbitrário, e depende do ângulo de observação e do objetivo pragmático da investigação. Uma investigação neurofisiológica, por exemplo, tenderá a dar relevo aos aspectos físicos dos sentimentos, como uma investigação psicológica ou cultural tenderá a enfatizar a dimensão mental dos mesmos eventos.
 Jurandir Freire Costa*
* Formado em medicina, livre-docente em medicina social e psicanalista por profissão. Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ. Autor de vários livros e artigos científicos.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Teologia e literatura (afinidades e segredos compartilhados)


Por Maria Clara Bingemer
Há uma afinidade constitutiva e uma irmandade ancestral entre teologia e literatura. Graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida. 
Parábola 
É muito difícil esconder o amor
A poesia sopra onde quer
O poeta no meio da revolução
Para, aponta uma mulher branca
E diz alguma coisa sobre o Grande enigma
Os sábios sonham
Que estão mudando Deus de lugar.
(Murilo Mendes) 
O vento sopra onde quer, você ouve o barulho, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. Assim é com todo aquele que nasceu do Espírito (Jo 3,8).
            Atrevo-me a escrever este texto sobre teologia e literatura com tremor e temor, mas com amor. Conhecedora razoável e amante ardente de literatura e poesia, crente com firmeza que a espiritualidade e a teologia têm parentesco próximo com o espírito que inspira os poetas e os escritores, começo tentando situar os termos.
            Literatura. O que é a literatura e qual é a melhor maneira de defini-la? A resposta não é óbvia, em absoluto, porquanto o termo pode ser usado em muitos sentidos diferentes. Pode significar qualquer coisa escrita em verso ou em prosa. Pode significar unicamente aquelas obras que se revestem de certo mérito. Ou pode referir-se à mera verborragia: “Tudo o mais é literatura”. Para os nossos propósitos, será preferível começar por defini-la de um modo tão amplo e neutro quanto possível, simplesmente como uma arte verbal; isto é, a literatura pertence, tradicionalmente, ao domínio das artes, em contraste com as ciências ou o conhecimento prático. Seu meio de expressão é a palavra, em contraste com os sinais visuais da pintura e da escultura ou com os sons musicais.
            Poesia vem do grego poíesis, que significa “ação de fazer algo”. Poesia, portanto, é práxis, apesar de ser a mais gratuita das práxis. Entre as suas inúmeras definições, o Aurélio e o Houaiss nos fornecem uma que interessa de perto a nossa temática: entusiasmo criador, inspiração.
            Espiritualidade vem de espírito, definido como a parte incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; o pensamento; a mente. Espiritual seria então o incorpóreo, o imaterial, sintonizado com o mistério, o místico, o sobrenatural.
            Teologia, por sua vez, vem do grego theología, “ciência dos deuses”. Pode ser o estudo das questões referentes ao conhecimento da divindade – de seus atributos e relações com o mundo e com os seres humanos – e à verdade religiosa. Em segundo lugar, pode significar igualmente o estudo racional dos textos sagrados, dos dogmas e das tradições do cristianismo. Pode ser ainda um tratado ou compêndio sobre as verdades da fé; ou o conjunto de conhecimentos relativos aos dogmas de fé ou que têm implicações com o pensar teológico, ministrados em cursos ou nas respectivas faculdades. A teologia é linguagem segunda, posterior a duas outras: a da revelação e a da fé. Sistematiza duas palavras a ela anteriores: a que Deus mesmo falou, rompendo seu silêncio eterno, e a que o ser humano fala, respondendo à Palavra de Deus, pronunciada no meio da história, rompendo o silêncio do tempo e do espaço.
1. Teologia e espiritualidade: separação e união
            A separação entre teologia e espiritualidade tem sua origem no divórcio ocorrido a partir do século XVI, de consequências nefastas tanto para a espiritualidade, que se viu reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que perdeu em movimento, beleza e flexibilidade, tornando-se um corpo doutrinal puramente explicativo e dedutivo (SOBRINO, 1985, p. 60). Uma teologia, enfim, que poderia pensar e falar sistematicamente sobre Deus, mas talvez, pelo menos em muitos casos, não deixava que Deus mesmo falasse.
            O momento atual redescobre, no interior da reflexão teológica, o direito de cidadania da espiritualidade cristã, a qual não é simplesmente vulgarização teológica, mas fonte rica e consistente de ensinamento novo e irrepetível, sopro do Espírito na história, que permite à teologia de hoje dizer novas palavras (VON BALTHASAR, 1974, p. 142).
            Em virtude disso, a teologia pode dialogar com a literatura e a poesia e descobrir com ambas uma irmandade ancestral, pois, graças à espiritualidade, ambas decorrem da inspiração.
2. Afinidades interdisciplinares entre teologia e literatura
            Acreditamos que há uma afinidade constitutiva entre teologia e literatura. Por isso, passamos, em seguida, a levantar alguns elementos que, a nosso ver, podem construir elementos de ligação e afinidade entre teologia e literatura.
- A inspiração: na origem tanto da literatura quanto da teologia está o fenômeno da inspiração. Da inspiração nos dizem a fisiologia e a Bíblia que tem a ver com o ar em nossos pulmões. Esse ar, sem o qual não se vive, diz a Bíblia que é como o próprio Espírito de Deus, o qual leva e traz a vida, sem se saber de onde vem nem para onde vai (cf. Jo 3,1ss). Sob a força da inspiração, os profetas disseram com boca humana as palavras divinas, os hagiógrafos escreveram o que Deus desejava que escrevessem. É o mesmo Espírito que enche de inspiração o poeta, para que passeie pelas vias da beleza e diga o que vê e o que sente em versos e palavras. Inspirada, igualmente, é a profecia do profeta, sendo o Espírito que o possui e, por vezes, o derruba o mesmo que simultaneamente o exalta e enche de entusiasmo. Inspirada, por sua vez, é a poesia do poeta, a qual seduz e arrebata.
- A palavra: quando dizemos que o meio de expressão literário é a palavra, ultrapassamos o significado etimológico de literatura, que deriva do latim littera – “letra” – e parece referir-se, portanto, de modo primordial, à palavra escrita ou impressa. Com efeito, muitas civilizações, desde a grega antiga à escandinava, francesa e inglesa, produziram importantes tradições orais. Inclusive extensos poemas narrativos como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, as sagas islandesas e o Beowulf anglo-saxônico foram, presumivelmente, cantados ou entoados por rapsodos e bardos profissionais, séculos antes de terem sido escritos. Para que se possa abranger essas e outras obras verbais, é útil considerar a literatura uma arte verbal, lato sensu, deixando em aberto a questão sobre se as palavras são escritas ou faladas.
            Por sua vez, a teologia encontra seu nascedouro e sua base na palavra. Palavra que se crê pronunciada por Deus e ouvida pelo ser humano na história, levando este mesmo ser humano, segundo o teólogo alemão Karl Rahner, a ser definido como um ouvinte da palavra (RAHNER, 1989, p. 37-59). E é igualmente palavra escrita pelos hagiógrafos ou escritores sacros, que recolhem aquelas tradições orais que permanecem por muito tempo sustentando a identidade do povo de Deus e, finalmente, as registram por escrito. Palavra declarada canônica pela Igreja, que seleciona entre aquilo que foi escrito o que autenticamente pode encontrar sua fonte na inspiração divina e na inerrância concedida como graça ao ser humano e declara essa palavra normativa para tudo e por nada normatizada.
            Muito especialmente a teologia das três religiões monoteístas – não em vão ou à toa chamadas religiões do Livro – não é pensável ou inteligível sem a Escritura, que no judaísmo é o sinal concreto e sensível da presença de Deus no meio do povo, no Alcorão é o próprio Verbo feito livro e no cristianismo é o texto sagrado que narra a história das amorosas relações de Deus com esse povo.
3. A arte de narrar e imitar a vida
            A literatura é sempre mais definida hoje como arte verbal. Em que sentido específico a literatura é uma arte? Talvez a maneira mais antiga e mais venerável de descrever a literatura como arte seja considerá-la uma forma de imitação. Isso define a literatura em relação à vida, encarando-a como um meio de reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida, tal como a pintura reproduz ou recria certas figuras ou cenas da vida em contornos e cores. Poderíamos dizer que a tragédia Édipo, de Sófocles, “imita” ou recria as lutas íntimas de um homem soberbo e poderoso que, lentamente, foi forçado a reconhecer e render-se à terrível verdade de que era, involuntariamente, culpado de parricídio e de incestuoso casamento com a própria mãe.
            Se tentarmos avaliar essa interpretação da literatura, teremos de reconhecer que ela toca em pelo menos dois importantes pontos. Considerada em seu valor aparente, sugere que a literatura imita ou reflete a vida; em outras palavras, a temática da literatura consiste nas múltiplas experiências dos seres humanos, em suas vivências. Ninguém negaria que isso é verdade.
            Mas a dificuldade está em que, ao defini-la dessa maneira, não dizemos grande coisa acerca da literatura, dado que não levamos em conta o que acontece à sua temática – que poderíamos chamar, na realidade, de sua matéria-prima – quando ela faz parte de um poema, peça teatral ou romance (RICOEUR, 1996). O segundo e importante ponto sugerido pela teoria da imitação é que vida está sendo imitada no sentido de ser reinterpretada e recriada. Nesse caso, a ênfase principal parece recair sobre o modo como a vida é imitada – que tipo de simulação ou de figuração será escolhido ou que espécie de espelho será usado para refletir as experiências humanas. Essa concepção põe-nos mais perto de um dos aspectos essenciais da literatura, a saber, que a matéria-prima é remodelada e até transformada na obra literária.
            Por sua vez, a Bíblia, fonte da revelação e nascedouro da teologia, é tudo, menos um manual de piedade. Trata-se do Livro da Vida por excelência. Paul Ricoeur nos diz algo sobre isso ao refletir sobre a nomeação de Deus (o objeto central da teologia) nos textos bíblicos. A nomeação de Deus sempre acontece no seio de um pressuposto que é o seguinte: nomear Deus é realizar o que já teve lugar nos textos que o pressuposto de minha escuta tem proferido (ibid.).
1) Significará isso que eu coloco os textos acima da vida? A experiência religiosa não é a primeira? O pressuposto não significa absolutamente que não exista “experiência” religiosa. Todas essas experiências são alguns dos sinônimos do que chamamos fé e, portanto, têm algo a dizer à teologia. Assim, a fé é um ato que não se deixa reduzir a nenhuma palavra, a nenhuma escritura. Esse ato representa o limite de toda hermenêutica porque ele é a origem de toda interpretação (RICOEUR, 1977, p. 15-54).
            O pressuposto, portanto, da teologia, que é reflexão sobre a experiência de fé, não é que tudo é linguagem, e sim que é numa linguagem que a experiência religiosa (no sentido cognitivo, prático ou emocional) se articula. Mais precisamente: o que é pressuposto é que a fé, enquanto experiência vivida, é instruída (no sentido de formada, esclarecida, educada) no interior de um conjunto de textos escritos que a pregação cristã traz de volta à palavra viva (RICOEUR, 1996). Esse pressuposto da textualidade da fé bíblica (bíblia quer dizer livro) distingue essa fé de qualquer outra. Em certo sentido, pois, os textos precedem a vida (ibid.). Eu posso nomear Deus na minha fé porque os textos da Escritura já o nomearam antes de mim.
            Frequentemente se afirma que, quando a palavra viva é entregue às “marcas externas”, que são as letras, os sinais escritos, a comunicação fica irremediavelmente amputada: perdeu-se alguma coisa que dependia da voz, do rosto, da comunidade de situação dos interlocutores. Não é falso. Pelo contrário, é tão verdadeiro, que a reconversão da Escritura em palavra viva tende a recriar uma relação não idêntica, mas análoga à relação dialogal de comunicação. A reconversão, porém, recria a situação precisamente para além da etapa escriturística de comunicação e com características próprias que dependem dessa situação pós-textual da pregação.
            O que a apologia unilateral do diálogo desconhece – insiste Ricoeur – é a extraordinária promoção que acontece no discurso quando ele passa da palavra para a escritura. Libertando-se da presença corporal do leitor, o texto se liberta também do seu autor, quer dizer: liberta-se, ao mesmo tempo, da intenção que o texto parece exprimir, da psicologia do ser humano que fica por trás da obra, da compreensão que esse ou essa tem de si mesmo/a e da sua situação, da sua relação de autor com seu primeiro público destinatário original do texto. Essa tríplice independência do texto em relação ao seu autor, ao seu contexto e ao seu primeiro destinatário explica que os textos estejam abertos a inúmeras recontextualizações pela escuta e pela leitura, como réplica à descontextualização contida em potência no ato mesmo de escrever (ibid.).
            Um texto – dirá ainda Ricoeur – é, em primeiro lugar, um elo numa corrente interpretativa: em princípio uma experiência da vida é levada à linguagem, transforma-se em discurso; depois o discurso se diferencia em palavra e escritura, com os privilégios e vantagens que já foram ditos; a escritura, por sua vez, é restituída à palavra viva por meio dos diversos atos do discurso que reatualizam o texto. A leitura e a pregação são essas reatualizações da escritura em palavra. Um texto é, desse ponto de vista, como uma partitura musical que pode ser executada (alguns críticos, reagindo contra os excessos do texto-em-si, chegam até a afirmar que é o “leitor-no-texto” quem completa o sentido, por exemplo, preenchendo suas lacunas, decidindo sobre suas ambiguidades ou até endireitando a sua ordem narrativa ou argumentativa) (RICOEUR, 1977).
Conclusão: teologia, literatura e antropologia
            Na teologia, a antropologia ocupa um lugar central, não apenas porque é feita por seres humanos e para seres humanos, mas também porque a humanidade pode iluminar e esclarecer o caminho e a compreensão da revelação de Deus. Se Deus se revela aos seres humanos, ele o faz por meio do humano, e a natureza humana de Jesus, que é também reveladora do ser de Deus, é prova disso.
            O inegável antropocentrismo da literatura – que inventa e narra histórias humanas ou de personagens outros que falam com palavras humanas – religa-se, então, ao antropocentrismo da teologia.
            E ambas, literatura e teologia, na arte de escrever imitando a vida para transformá-la, encontram sua fonte na inspiração que vem de mais além, cujo segredo é progressivamente desvendado aos seres humanos que se dispõem a tratar mais intimamente com o mistério desta vida doada gratuitamente pelo Criador a suas criaturas.
            Não é à toa, portanto, que a área da interface entre teologia e literatura é uma das que mais crescem na pesquisa hoje. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e digna de ser vivida.
Bibliografia
RAHNER, K. O ouvinte da Palavra. In: ______. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989.
RICOEUR, P. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus. In: ______. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
______. Herméneutique de l’idée de Révélation. In: ______. La Révélation. Bruxelles: Publications des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1977.
SOBRINO, J. Espiritualidade e teologia. In: ______. Liberación con Espíritu. Santander: Sal Terrae, 1985.
VON BALTHASAR, H. U. Teologia y espiritualidad. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 13, abr.-jun. 1974
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/temas-teologicos/teologia-e-literatura-afinidades-e-segredos-compartilhados/

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Espírito e natureza na reflexão Teológica atual


Por Josias da Costa Júnior*
Ao propor o título acima, queremos conjugar duas preocupações latejantes: 1) a centralidade que o Espírito Santo deve ocupar na reflexão teológica, tal como acontece nas comunidades de fé; e 2) a atual situação de constante ameaça em que se encontra este planeta. Num campo mais amplo de reflexão, trata-se de estabelecer uma relação entre teologia e ecologia, bem como investigar sobre quais bases há a possibilidade de pensar uma teologia ecológica. Com isso, destacaremos a importância de trazer a pneumatologia e a ecologia para o centro da reflexão teológica e os desafios que se apresentam quando isso se efetiva. Portanto, os objetivos aqui são: pensar uma teologia ecológica, destacar o papel central do Espírito e propor novo eixo interpretativo para a teologia cristã. A ecologia não deve ficar restrita aos grandes círculos de debates acadêmicos ou ao âmbito das políticas partidárias, pois é questão e tarefa de todas as pessoas. Por isso, a articulação entre teologia e ecologia pode ter alcance em variados setores da sociedade, e é possível levantar questões sobre como sensibilizar e desenvolver, por exemplo, uma vida cristã com consciência e sentido de preservação do meio ambiente, a criação de Deus.

1. Desafios e possibilidades da ecologia na reflexão teológica e na prática cristã
 A teologia cristã se propõe a uma visão global da humanidade. Quem se pergunta pelos planos de Deus deve se confrontar com os planos do ser humano. Ao confrontar os planos da humanidade com os planos de Deus, surge a realidade do pecado da humanidade. Não falamos no sentido abstrato, mas daquele pecado que está escrito na história, na realidade concreta, nas estruturas das sociedades. A teologia quer sempre mergulhar nas raízes dos problemas do ser humano. Então, fazer teologia significa fazer uma leitura da realidade à luz da fé; significa, nesse caso, perguntar o que Deus tem que ver com questões ambientais, ecológicas. Nesse sentido, a teologia não pode ficar indiferente aos atuais problemas ecológicos. Na verdade, a tradição cristã já foi duramente criticada e apontada como uma das grandes responsáveis pela crise ecológica atual, pois a interpretação que situou o ser humano como centro dominador da criação povoou o imaginário ocidental.
É preciso uma aproximação diferente do texto sagrado, pois Gênesis 1 apresenta a ideia de Deus como criador e do ser humano como imagem de Deus. Em Gênesis 1,28, o ser humano tem suas atribuições de domínio na criação, mas isso não significa que ele deve ser um senhor prepotente, arrogante: antes, deve ser prudente e amoroso; deve “cultivar” e “guardar” a criação em curso, conforme Gênesis 2,15.
Quanto à ecologia, é mais correto afirmar que ela se apresenta muito mais como desafio do que como objeto da teologia. É importante lembrar que há dois modos de compreensão da ecologia: como crise ambiental e como ciência. Em geral, as pessoas entendem que “ambiental” e “ecológico” são sinônimos. Mas não é demais enfatizar que, na ciência, o ambiental é relativo ao ambiente; já o ecológico é um pensamento científico dentro da biologia, que é outra ciência (cf. Boff, 2004, p. 147). Portanto, há duas posições distintas para compreender a mesma questão: uma é de uso popular, e outra, de uso científico (biologia). Contudo, o campo semântico foi ampliado com os três famosos registros ecológicos: o ambiental, o social e o mental (Guattari, 1990, p. 8).
Sobre a questão da relação entre teologia e ecologia, citaremos duas dificuldades que podem surgir. A primeira é teórica, pois ecologia e Bíblia, ecologia e literatura, ecologia e sociologia, ecologia e ética, ecologia e política revelam áreas de pesquisas diferentes e exigem fundamentações teóricas também diferenciadas, outros meios de aproximação, métodos diversos. Isso significa que, ao nos deter na relação entre teologia e ecologia, está caracterizada a opção por uma linha de pesquisa e, consequentemente, a recusa de outras tantas.
A outra dificuldade é conceitual, pois não é suficiente conceber uma teologia ecológica, uma relação entre teologia e ecologia, apenas conjugando os dois termos, “teologia” e “ecologia”, de modo enunciativo. É necessário repensá-los numa perspectiva crítica. Apenas empregar e/ou reempregar conceitos antigos de “natureza” e “teologia” para o estabelecimento das formas de uma teologia ecológica é ficar no meio do caminho de uma abordagem interdisciplinar e é o mesmo que não fazer teologia ecológica. Entendemos aqui que uma teologia ecológica deve apresentar os termos “teologia” e “ecologia” de tal modo juntos, que forneçam uma perspectiva crítica desde uma avaliação da herança da cultura ocidental e da tradição cristã.
Mesmo com essas dificuldades, brevemente apresentadas acima, lembramos que a teologia cristã reivindica a sua palavra sobre tudo aquilo que envolve o ser humano. Com isso, a ecologia, em seus diferentes modos de entendimento, também se tornou alvo de interesse na reflexão teológica. Na vasta literatura que se pode encontrar em perspectiva ecológica para uma leitura dos vários aspectos da vida, existe uma busca para interpretar o modo mais correto de tratar o meio ambiente ou fazer bom uso da natureza. Isso significa que a ecologia tem servido para interpelar criticamente a postura do homem moderno. Uma crítica que implica questionamento dos pressupostos antropológicos e éticos desse homem moderno, fazendo emergir, assim, a reivindicação de um novo paradigma, isto é, de um novo modelo básico interpretativo da realidade.
Falar da relação entre teologia e ecologia também abre a possibilidade de pôr em relevo a singular importância que a teologia cristã teve na construção do paradigma do homem moderno. Isso significa considerar que a teologia cristã contribuiu de modo positivo e negativo para a formação desse homem moderno, à medida que se observa grande desenvolvimento tecnológico à custa de impiedosa destruição da natureza. Desse modo, a teologia cristã também se tornou alvo das críticas feitas ao relacionamento do homem moderno com seu ambiente. Nesse sentido, a relação entre teologia e ecologia é também uma relação tensa, de interpelação, já que sobre a primeira recai a acusação de pertencer a uma tradição causadora da destruição do meio ambiente.
Mas a relação entre teologia e ecologia deve também provocar uma ampliação do interesse pela questão ambiental. A ecologia já não é apenas tarefa da ciência, ou dos ecologistas, ou dos engenheiros do meio ambiente. Essa abertura significa importante ampliação do tratamento da questão ambiental com uma visão que quer ultrapassar a compreensão reducionista do mundo, quando deste foi extirpada arbitrariamente qualquer dimensão de abertura ao mistério, à afetividade, à transcendência, a Deus. Para a reflexão teológica cristã, é interessante pensar na ecologia como mola que impulsiona a crítica aos pressupostos antropológicos e éticos do homem moderno, uma vez que a crise ecológica interpela os fundamentos da civilização moderna, a saber: a ciência, o individualismo, a autonomia, a industrialização, o consumismo, a técnica, a urbanização. A crítica recai sobre a compreensão do ser humano como medida de todas as coisas, pois isso estabeleceu distanciamento entre o ser humano e a natureza. Essas e outras dificuldades – e também desafios que se interligam, interagem, se completam, no campo teórico e prático – surgem quando se busca relacionar teologia e ecologia; quando se quer entender o significado da fé no Deus criador e deste mundo como criação sua, diante de toda a realidade de exploração industrial desmedida e de constante agressão e destruição da natureza.

2. Deus em toda sua criação: uma compreensão a partir do pensamento processual
 Neste ponto, queremos mostrar que há profundo interesse de Deus em se relacionar com a sua criação. Gênesis 1 afirma que o “Espírito de Deus pairava sobre a face das águas”. Por essa declaração é possível perceber que não há nenhum conflito ou contraposição entre transcendência e imanência, ou entre além e aquém. Pensar na necessidade de compromisso que as comunidades de fé devem ter com as questões ecológicas passa pela compreensão da presença de Deus no mundo e pela fé nessa presença. A teologia do processo ajuda significativamente nessa reflexão entre teologia e ecologia e na relação de Deus com sua criação.
O pensamento do processo se revela contrário às práticas dominantes da vida moderna, além de ser uma alternativa aos dualismos alma e corpo, espírito e natureza, mente e matéria, indivíduo e coletivo. Ter uma fala relevante na situação contemporânea é grande desafio, e a teologia que mais adequadamente se apropriou das contribuições do pensamento do processo é chamada de teologia do processo. Os pensadores do processo estão preocupados em conceber o mundo como um organismo, algo vivo, dinâmico, distanciado de um modo mecânico de ver a realidade. Então, a característica dessa teologia é o processo, isto é, a compreensão de que a realidade não é estática, imóvel, separada e substancial, mas é dinâmica, está em processo. Muito significativo na ideia de organismo é que a existência de cada ente deve ser vista na relação com seu meio ambiente. Seguindo essa linha de pensamento, na perspectiva da fé no Deus criador, a atenção deve se concentrar numa criação que ainda está em processo de se fazer, ou seja, numa natureza plena de energia criativa.
O aspecto descrito acima pode ser chamado de modelo ecológico, pois valoriza uma postura de apreciação de todos os seres vivos numa tentativa de superar o utilitarismo consagrado pelo modelo mecânico, que tem o ser humano como centro e medida de todas as coisas (antropocentrismo). Isso significa alargamento e desejo de mudança: da visão antropocêntrica para a ecológica.
É importante que se diga que o modelo ecológico tem desdobramentos muito significativos, particularmente na doutrina de Deus. No teísmo clássico, Deus se caracteriza como substância imutável, enquanto a teologia do processo o vê como a mais perfeita exemplificação do modelo ecológico. Essa divina perfeição não significa que Deus seja insensível ao sofrimento e à dor da sua criação, mas aberto, receptivo e responsivo. Deus é constituído por relações com toda a sua criação, e essa relação expressa o amor. Deus não está distante, simplesmente observando o sofrimento de sua criação, que é duramente agredida. Também não está indiferente ao grito de dor da criação por causa do ferimento (cf. Romanos 8,22) provocado pela falta de preservação, falta de cultivo do ser humano. Assim, Deus está envolvido amorosamente com e na sua criação. O aspecto que podemos mencionar na questão da imanência de Deus ou da sua necessária relação com o mundo é a busca por uma visão integral de Deus e do mundo. Uma das principais contribuições dos teólogos do processo é apresentar uma visão de Deus verdadeiramente presente na sua criação. “O Espírito do Senhor enche a terra” (Sabedoria 1,7). Deus está no mundo.

3. Ecofeminismo: teologia e ecologia a partir do olhar feminino
 Uma reflexão sobre Deus – e sobre tudo que a ele se relaciona – a partir da visão das mulheres não pode ser ignorada nos dias atuais (reflexão feminista). Quando se trata da experiência que as mulheres têm de Deus e de mundo com o fito de descrever a relação de Deus com o mundo, trata-se de ecofeminismo. A proposta central é redefinir como Deus se relaciona com o mundo. O termo ecofeminismo reúne, portanto, duas preocupações: a ecologia e o feminismo. As ecofeministas afirmam haver estreita ligação entre dominação das mulheres e dominação da natureza (Ruether, 2000, p. 11).
Essa relação entre dominação das mulheres e dominação da natureza acontece no nível simbólico-cultural e socioeconômico. A religião se insere nessa dinâmica da dominação ocidental, pois, especificamente a tradição cristã, exerceu papel determinante nos processos que inferiorizaram as mulheres e a natureza, por meio dos seus padrões simbólico-culturais (Ruether, 2000, p. 12). Diante desse quadro de dominação simbólico-cultural e socioeconômica, as ecofeministas vão afirmar que o relacionamento saudável entre os seres humanos e a terra exige nova espiritualidade e nova cultura simbólica. De igual modo, sugerem que os textos sagrados sobre a criação, o pecado, o mal e a destruição do mundo não foram interpretados de modo a enfocar positivamente a mulher e por isso devem ser relidos e reinterpretados.
É importante o aspecto salientado pelo ecofeminismo relativo à possibilidade de pensar numa vida de relações pessoais mais próximas da natureza e também mais em contato com os sonhos alimentados por diferentes grupos. O ecofeminismo se empenha em pensar uma teologia que tudo relaciona, que respeita e celebra a diversidade, as combinações, conforme está escrito: “Há diversidade de dons da graça, mas o Espírito é o mesmo” (1 Coríntios 12,4). A redução a uma única expressão implica o risco de matar a vida. Além disso, a biodiversidade ou pluralidade vai revelar que o cosmos, a Terra e todos os seres estão em processo, em constante desenvolvimento; é imperioso afirmar uma convivência em meio a tamanha diversificação. A unidade não deve ser pensada como sinônimo de perda de identidade, mas como afirmação dessa identidade (Gebara, 1997, p. 102).
Finalmente, a perspectiva ecofeminista não é fechada, mas aberta ao diálogo, tendo a mulher como interlocutora privilegiada. A articulação do feminismo para pensar a vida e a ecologia “nos abre não só para uma possibilidade real de igualdade entre mulheres e homens, de diferentes culturas, mas para um relacionamento diferente entre nós, com a Terra e com todo o cosmo” (Gebara, 1994, p. 69).

4. As comunidades de fé e a atual questão ecológica
 Os movimentos atuais do Espírito são tão desafiadores para a teologia quanto a atual realidade ecológica. Diante disso, não é possível atender a esses desafios utilizando uma interpretação do tipo normativa. Uma centralidade do Espírito Santo na teologia cristã atual certamente muda o modo de elaborar a teologia e de ler seus temas clássicos, como a eclesiologia e a cristologia, que ocupam o lugar central na interpretação normativa. A teologia ocidental se moveu no interior de um eixo interpretativo eclesiológico-cristológico. Uma interpretação teológica que contemple um novo eixo, que deve emergir do diálogo com os movimentos do Espírito (das comunidades de fé cristã e suas práticas) e da realidade ecológica atual, é o que propomos e chamamos de pneumatológico-ecológica.
Há, em nosso continente, espetacular avanço do movimento carismático e do pentecostalismo, e não faltam interpretações com mediações da sociologia e da antropologia. Essas articulações socioantropológicas sugerem sempre interpretações que associam superprodução simbólica como compensação da real carência econômica na vida das pessoas crentes. A teologia se valeu muito dessa mediação para articular o seu discurso, como ato segundo dessas leituras socioantropológicas. Dessa forma, ela não teve condições de fazer uma leitura teológica desses novos movimentos e perceber sua dinâmica, a riqueza simbólica neles presente e as imagens de Deus que deles emergem. No entanto, foram esses movimentos do Espírito que deflagraram transformações importantes na teologia cristã: “com o ingresso das Igrejas ortodoxas em 1961 e o ingresso, mais tarde, de algumas Igrejas pentecostais no movimento ecumênico, é nesses dois terrenos que estão ocorrendo os avanços na pneumatologia” (Moltmann, 1998, p. 16). Isso ocorre de modo muito mais significativo na América Latina. O fato é que a teologia seguiu o rastro dessas interpretações socioantropológicas e repetiu a ênfase na eclesiologia e na cristologia. Tanto uma quanto outra foram determinantes para a rica e criativa reflexão teológica latino-americana.
Ora, privilegiar a cristologia e a eclesiologia na teologia do nosso continente significa dizer que houve grande preocupação em dialogar com a herança teológica em que prevaleceu o viés hermenêutico cristologia-eclesiologia na reflexão teológica libertadora. Dessa forma, as grandes inovações da teologia latino-americana se deram dentro desse eixo interpretativo. Não obstante a contribuição que a teologia da libertação ofereceu e ainda oferece, é preciso fazer essas constatações críticas quanto aos seus limites. Portanto, é preciso avançar, buscando uma imagem do Espírito Santo plausível para a realidade da América Latina, de tal maneira que a natureza também seja incluída nesse projeto de libertação, visto que o mundo moderno a destrói sem medida e os limites da ação do Espírito Santo não se esgotam no ser humano, mas se estendem a toda a criação.

5. Espírito e natureza: considerações finais
 É interessante refletir sobre os aspectos da fé cristã e da vida na perspectiva da pneumatologia, partindo da experiência e da teologia do Espírito Santo. Partir da experiência significa ultrapassar os limites da teologia da Igreja, que é a “teologia dos pastores e dos padres” (Moltmann, 1998, p. 29). Partir da experiência, então, significa fazer “teologia de leigos”, e isso implica privilegiar e ampliar os espaços onde a vida se faz e se refaz, se produz e se reproduz, o que equivale a estender os espaços de comunhão com o Espírito.
A teologia se mostra atual quando vai além dos métodos que circunscrevem a ação do Espírito nos limitantes espaços eclesiásticos – porquanto enfatizam a relação entre pneumatologia e eclesiologia – ou entendem a ação do Espírito apenas como uma confirmação totalmente subjetiva do processo revelador objetivo de Jesus, à medida que sublinham a relação subserviente da pneumatologia para com a cristologia. Contudo, o Espírito vivificante sopra onde quer (João 3,8).
A teologia deve ser articulada de modo dialogal e inclusivo, atentando também para os problemas sociais, étnicos, políticos e ecológicos. Quando a teologia falar de salvação, deverá relacioná-la com a vida eterna e com a cura nesta vida oprimida, doente e pobre. Com isso, a salvação não deve significar instâncias separadas entre além e aquém. “‘Além’ e ‘aquém’ não mais são níveis diferentes do ser na terra e no céu, mas diferentes épocas do mundo do único processo de redenção. Os tempos presente e futuro estão imbricados um no outro pericoreticamente como antecipação e plenificação” (Moltmann, 2004, p. 205).
O outro elemento do eixo interpretativo que temos sugerido é a ecologia. A reflexão sobre Deus, e sobre tudo que a ele se relaciona, deve ser total, de tal modo que celebre a vida inteira (humana e não humana). O ser humano não é o dominador e o centro da criação, mas tem a tarefa de cuidar da criação, guardá-la (Gênesis 2,15) e desenvolver uma relação harmônica com a “mãe-terra (‘adamah)” (Reimer, 2006, p. 14). Por isso, insistimos que a teologia latino-americana não deve se esquivar dos problemas ecológicos, como se isso não fizesse parte de nossa realidade.
A história dos primeiros habitantes do nosso continente revela uma herança de relação de respeito à natureza que, de algum modo, precisa ser resgatada. Respeitar a criação é respeitar a vida. Não se podem negligenciar certos carismas no dia a dia do mundo, no movimento ecológico, nos processos de afirmação da vida. As questões ecológicas aqui estão ligadas à questão da qualidade da vida, particularmente dos seres mais frágeis e das pessoas mais pobres em suas precárias condições de existência. Por isso, a experiência carismática do Espírito de Deus não deve ser despolitizada, tampouco despolitizante, pois o Espírito Santo é fonte de energia, fonte da vida, de toda a vida.
Finalizamos aqui estas observações introdutórias sobre a preocupação principal da teologia hoje. O Espírito na vida das comunidades cristãs em nosso continente ocupa lugar central, e assim será nos próximos anos da história da Igreja. De igual modo, a questão ecológica se fará presente na reflexão teológica e também nas práticas de fé.
fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/temas-teologicos/espirito-e-natureza-na-reflexao-teologica-atual/
 * Doutor em Teologia (PUC-Rio) e professor no Instituto Metodista Bennett (RJ).
BIBLIOGRAFIA

BINGEMER, Maria Clara. Teologia e espiritualidade. Uma leitura teológico-espiritual a partir da realidade do movimento ecológico e feminista. Cadernos de Teologia Pública, São Leopoldo: Unisinos, ano 1, n. 2, 2004.
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio Janeiro: Sextante, 2004.
COMBLIN, José. O tempo da ação: ensaio sobre o Espírito e a história. Petrópolis: Vozes, 1982.
GEBARA, Ivone. Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião. São Paulo: Olho d’Água, 1997.
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GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.
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