sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Outro cristianismo é possível.


Centro Ecumênico Diego de Medelim


Em nosso continente americano e caribenho cresce a consciência de nossas diferenças a respeito de outros povos e das que existem entre nós. Nossas identidades locais e regionais foram e continuam sendo tecidas e modeladas a partir de milhares de histórias particulares − cada uma com suas luzes e suas sombras, seus odores e sabores, seus ódios e seus amores, seus medos e suas experiências de libertação.


Nesse contexto entretêm-se as histórias de nossas religiões e de nossos ateísmos. Histórias de deuses que chegam de fora, tomando o lugar dos da terra, mas histórias também da sublevação, ostensiva ou clandestina, dos deuses aborígenes em luta contra os estrangeiros. Histórias de alianças entre "divindades” de menor número, os "santos” dos pobres, com outras que, embora traídas de fora pelos dominadores, são maternais – como a Virgem Maria – ou sofredoras – como o Cristo açoitado e coroado de espinhos. Dessas histórias confusas originaram-se hibridações únicas, às vezes amáveis e próximas, como nos bailes de La Tirana, outras desmesuradas, como quando justificam espoliações alheias ou autoflagelações.


A religião "oficial” dominante, ou seja, a católica, ou as religiões que se vão tornando "oficiais”, como algumas das protestantes, temem tal promiscuidade e se sentem ameaçadas, pois elas pretendem ser as únicas "verdadeiras”. Esta pretensão se vê hoje condenada, além disso, pela racionalidade científico-técnica que, desde a escola e a TV, vai sendo cada vez mais a de todos, letrados e iletrados. Dela deriva um conceito do mundo que torna difícil a crença em um "Deus”, exercendo seu poder "desde o alto” ou "desde fora” deste mundo, com ameaças de castigo para os desordeiros e de prêmios para os obedientes em uma "eternidade” sem tempo nem espaço.


Essas e outras imagens da linguagem religiosa tornaram-se incompatíveis com a concepção do mundo e da história que veio se desenvolvendo desde o iluminismo até nossos dias, cujos pilares são: a "mundanidade” da Terra, a chegada do ser humano à sua idade adulta e autônoma e, por conseguinte, à sua responsabilidade histórica para construir ou destruir a Terra, não obstante sua própria precariedade.


Daí que nós, mulheres e homens de hoje, suspeitamos que nossas decisões diárias e nosso destino sobre a Terra não se encontram predeterminados em nenhum livro celestial, nem prescritos de antemão em códigos divinos, nem sequer na lei de Moisés. Encontramos "Deus” e o "diabo” (assim mesmo entre "aspas), como o diziam Dostoiévsky e Sartre, em nosso próprio coração, ou seja, como facetas de nossa alma e não como seres à parte a cujo poder, bem ou mal, estejamos expostos. Assim também, desconfiamos que o "céu” e o "inferno” estão desde agora na profundidade de nossas almas e na forma de relacionamento que sabemos criar em nosso ambiente humano sobre essa parcela do cosmos que é a Terra. Estamos bastante persuadidos dessas suposições, embora sem saber como expressá-las com clareza.


Contudo, se somos membros de alguma igreja, se apenas nos atrevemos a balbuciar estas suspeitas ou persuasões íntimas... Mulheres e homens do século XXI, precisamos pensar e falar mais livremente acerca de tais dúvidas, pois elas constituem parte de nossa consciência adulta, sem ouvir que por elas devamos ser acusados de heresia.


Parece que os povos primitivos não têm tanta afetação religiosa diante da "mundanidade” da Terra, porque, para eles, a divindade está nas próprias coisas e não no alto ou fora delas. Nelas percebem por intuição uma energia mais que humana, porém, contudo, sendo deste mundo, que habita nelas. A vida que flui pelas veias e por todos os leitos dos rios desta terra germina a partir de uma energia imanente com uma potencialidade e impulso internos. Esta intuição nasce de uma forma de conhecimento (intuitiva e não analítica) e de alguns pressupostos racionais (relacionados à existência das coisas), mais de acordo com o materialismo das ciências do que com algumas interpretações eclesiásticas oficiais. No modo de sentir dos povos primitivos, o "ser” do divino não estaria fora, mas dentro, no interior mesmo deste mundo.


Na nossa América, de tantas culturas, todas e todos participamos em maior ou menor grau dessas diferentes concepções do mundo, tanto das originárias quanto das mais modernas e das que subjazem às culturas antigas em que se expressou a Bíblia. Participando de todas elas, sentimos com maior ou menor clareza as contradições que as opõem. Há os que conseguem viver sua vida religiosa em um plano, afirmando, com fé simples, "verdades” incompreensíveis, e, paralelamente, em outro plano, manter uma concepção do mundo mais moderna. É a atitude, por si instável e bastante precária, dos que pensam que se deve acatar a fé sem raciocinar sobre ela nem ao menos questioná-la.


Cada vez mais cristãos sentem desassossego e inquietação dentro de suas igrejas por não poderem falar ali sobre as suspeitas mencionadas anteriormente. A isso se acrescenta o peso da estrutura autoritária das igrejas, sua orientação moralista e a linguagem legalista e impositiva de alguns de seus pastores. Ao mesmo tempo, esses cristãos inquietos buscam formas inéditas do seguimento de Jesus em que sua vida adquira sentido.


Quem tiver interesse em se aprofundar nessa problemática, recomendamos o livro Outro cristianismo é possível: Fé em linguagem moderna (São Paulo: Paulus, 2008. Coleção "Tempo axial”) cujo autor é o pe. Roger Lenaers, sacerdote jesuíta de nacionalidade belga. Permitimo-nos apontar aqui alguns de seus subsídios e anotar também, do nosso ponto de vista latino-americano e caribenho, as que nos parecem ser algumas de suas limitações.


Este livro descreve sem rodeios a mudança de esquemas ou paradigmas de pensamento de nossa época, mudança que nos distancia radicalmente dos esquemas mentais bíblicos e mais ainda dos da igreja medieval aos quais ficou presa boa parte de nossos catecismos e tratados de teologia. Por isso, o livro aponta para a necessidade de encontrar uma linguagem que ajude a viver hoje a fé cristã, dando conta dela de forma coerente diante da cultura contemporânea. Parece-nos que essa preocupação pertence a todo o povo de Deus, não somente aos letrados. Todos, também os pobres, têm direito a uma fé adulta e razoavelmente formulada, como o diz com outras palavras o teólogo Antonio Bentué (em sua obra Un más allá em medio nuestro, Pastoral Popular, outubro 2008 p. 19). Essa necessidade leva a uma crítica fundamentalmente do discurso da instituição eclesiástica.


O livro de Lenaers acerta nessa sua dupla crítica, mas, como é escrito a partir da realidade europeia, deixa na sombra alguns aspectos que, a partir de nossa vivência latino-americana, completariam sua proposta de nova linguagem. Lendo-o a partir de nossas diversidades culturais próprias, faria-nos falta, primeiro, uma reflexão sobre o "lugar teológico” da realidade da pobreza e do antagonismo e luta de interesses em nossa sociedade. A partir da perspectiva europeia, essas realidades não são tão visíveis nem urgentes como o são entre nós. É, pois, compreensível que o livro de Lenaers não as destaque como temas de reflexão teológica.


Em segundo lugar, esse livro deixa na sombra uma dimensão da linguagem religiosa na qual está contida boa parte da sua "verdade”, dimensão que se apresenta ao contrário muito presente nas religiões de nossos povos originários: a da expressividade simbólica. Pois a "verdade” do símbolo consiste em recolher a necessidade tão ressentida em nossas latitudes de nos dizer uns aos outros o sentido último de nossa vida, nossos anelos e nossas esperanças, nossas alegrias e nossas frustrações – contando-o com todas as cores, melodias e tons a nosso alcance, como Jesus contou o Reino em parábolas. Essa "narrativa”, essencial para a vida, somente se realiza em forma de símbolos e sistemas simbólicos poéticos ou religiosos. Se a linguagem de nossas igrejas deixou de ter sentido, é talvez porque se fechou no gênero didático das "lições de coisas”, como se as "coisas religiosas” (graça, virgindade, trindade, espírito santo, divindade, outra vida...) fossem "objetivas”. Seria desejável que, em vez disso, as narrássemos mutuamente, inseridas em experiências humanas, próprias ou alheias, pessoais e sociais, como sinais de que é possível abrir e embelezar a convivência humana para lá do fechamento dos sistemas científicos, econômicos e políticos.


Criticar a linguagem religiosa é somente um primeiro passo para compreendê-la. Voltar ao símbolo religioso e recuperá-lo por meio da crítica é talvez a única maneira de narrar o "sentido” da vida, e, portanto, de colocá-lo no caminho de sua busca.


[Fonte: Servicios Koinonía].