sexta-feira, 21 de março de 2014

A pobreza do outro e os novos tempos da Igreja

Fonte:   domtotal.com
‘Se tenho fome, o problema é biológico. Se meu irmão tem fome, o problema é teológico’.
Por Maria Clara Bingemer*
A Igreja respira encantada com o papa Francisco e o movimento que inaugurou e mantém de volta ao Concílio Vaticano II e sua renovação. Seu pontificado vem marcado por essa retomada do espírito de liberdade e abertura daquele inesquecível evento eclesial que aconteceu há 50 anos.

Na América Latina, a recepção deste Concílio se deu em uma direção bem marcada de fidelidade ao contexto do continente, feito de pobreza, injustiça e opressão. Toda a Igreja do continente releu o grande evento do Vaticano II com uma atenção qualificada àquelas grandes maiorias que se encontravam mais necessitadas, mais fragilizadas e mais empobrecidas. A chamada opção preferencial pelos pobres foi o nome cunhado para "batizar" essa escolha evangélica feita pela comunidade eclesial naquele momento histórico.

Após um tempo longo que já foi chamado por grandes teólogos e pessoas da Igreja de "inverno eclesial", onde parecia que – entre outras a primordialidade dos pobres havia ficado na sombra, eis que foi lançado recentemente em Roma o livro do prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller: Ao lado dos pobres. Trata-se da mais alta autoridade em termos de doutrina da Igreja Católica e, portanto, guardião da indiscutível legitimidade do conteúdo do livro.

Mas há mais: Müller não escreveu o livro sozinho. Acompanhou-o outro teólogo: o pai da Teologia da Libertação, o sacerdote peruano da Ordem dos Pregadores, Gustavo Gutiérrez. No prefácio, Joseph Sayer, presidente da Obra Assistencial Misereor, identifica o teólogo peruano como uma pessoa apaixonada.  E como não haveria de sê-lo quem passou a vida servindo os pobres, vivendo junto a eles e lidando apaixonadamente com a pergunta: “Como se pode falar do amor de Deus perante a miséria dos pobres e a injustiça do mundo?"

Ou seja, o alerta lançado por Hans Jonas após a Segunda Grande Guerra e o Holocausto nazista — "Como falar de Deus depois de Auschwitz"? — ecoa novamente diante de outro genocídio: aquele cotidiano que mata continuamente milhares e mesmo milhões de pessoas em todo o planeta. Gustavo Gutiérrez  descobriu, vivendo perto dos pobres, que toda teologia deve fazer-se esta pergunta e deixar-se atingir por ela, para então construir seu discurso sobre Deus.  Pois, concordando com a frase de Berdiaev, se eu tenho fome, é um problema biológico. Se o meu irmão tem fome, é um problema teológico”.

E foi justamente a pobreza do outro a interpelar com pungente insistência a fé que levou Gutiérrez a criar a corrente chamada Teologia da Libertação, que posteriormente ganhou muitos adeptos não apenas na América Latina mas também no Hemisfério Norte e no mundo inteiro.  Essa teologia e seus protagonistas também conheceram dificuldades e conflitos devido à opção de fazer teologia ao lado dos pobres e a partir de suas interpelações.  Foram convocadas a testemunhar e provar sua pertença eclesial e sua ortodoxia.

A teologia de Gustavo Gutiérrez ofereceu essa prova em suas obras, nas quais o compromisso inarredável com os pobres se alia indissoluvelmente à mais profunda espiritualidade cristã e à mais profunda fidelidade à Igreja.  Ela ajudou a Igreja a redescobrir o compromisso com a justiça e o anúncio da boa-nova aos pobres como um de seus imperativos centrais.

O papa Francisco, em prólogo feito ao livro, agradece profundamente aos autores que chamam assim a atenção para este tema fulcral na Igreja: a pobreza do outro, que é critério de verificação da confissão de fé cristã.  Afirma sua esperança de que os leitores terão o coração tocado pela exigência de uma conversão a esses que, maltratados pela sociedade injusta, são os prediletos de Deus. E diz literalmente: ´´E bem saibam, amigos leitores, que nesta exigência e nesta via me encontram desde agora com vocês, como irmão e sincero companheiro de caminho´´.

O cardeal Müller, o teólogo Gutiérrez e o papa Francisco querem dizer que enquanto a pobreza empalidecer no rosto do outro o fulgor de sua imagem e semelhança com Deus, a Igreja não pode descansar.  O que importa nem é tanto tal ou qual corrente teológica.  Importa, sim, a realidade vital dos pobres.  Enquanto esta for uma interpelação dolorosa e cruel lançada à consciência da humanidade, as preocupações e a reflexão da Teologia da Libertação estarão mais do que vivas.
SIR/Jornal do Brasil
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros, como "Deus amor: Graça que habita em nós" (Editora Paulinas) e "O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença" (Editora Rocco).

terça-feira, 11 de março de 2014

‘A importância da espiritualidade para a saúde’





Leonardo Boff (*)
Via de regra todos os operadores de saúde foram moldados pelo paradigma científico da modernidade que operou uma separação drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das enfermidades e  também para as formas de cura.
Reconhecido este mérito,  não se pode esquecer que se perdeu a visão de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da sociedade, da natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura nesta totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo cultivo desta totalidade, que zela pelo  Eixo estruturador de nossa vida: é a dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o cultivo daquilo que é próprio do espírito que é sua capacidade de projetar visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e re-ligar todas as coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo mas a morte como ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade é toda atitude e atividade que favorece a  expansão da vida, a relação consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda e a transcendência como modo de ser, sempre disposta a novas experiências e a  novos conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro identificaram a base biológica da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal do cérebro. Verificaram empiricamente que sempre que se captam os contextos mais globais ou ocorre uma experiência significativa de totalidade ou também quando que se abordam de forma existencial (não como objeto de estudo) realidades últimas, carregadas de sentido e que produzem atitudes  de veneração, de devoção e de respeito, se verifica uma aceleração das vibrações em hertz dos neurônios aí localizados. Chamaram a este fenômeno de “ponto-Deus” no cérebro ou da emergência da “mente mística”(Zohar, QS: Inteligência espiritual, 2004). Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta a presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que, enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal, sustentando todas as coisas. Dá-se conta de que  pode, surpreendetemente, entabular um diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos de percepção do Elo que liga e re-liga todas as coisas. Sente-se inserido no Todo.
Este “ponto-Deus” se revela por valores intangíveis como mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade. Despertar este “ponto-Deus”, tirar as cinzas  que uma cultura demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus mas sentir Deus mediante este órgão interior e fazer a experiência de sua presença e atuação a partir do coração.  Ele é percebido como entusiasmo (em grego significa ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a vontade de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos  a esta dimensão espiritual no cuidado da saúde e da doença? A espiritualidade possui uma força curativa própria. Não se trata de forma nenhuma de algo mágico e esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são próprias da dimensão espiritual tão válidas como a inteligência, a libido, o poder, o afeto entre outras  dimensões do humano. Estas energias são altamente positivas como amar a vida, abrir-se aos demais, estabelecer laços de fraternidade e de solidariedade, ser capaz de perdão, de misericórida e de indignação face às injustiças deste mundo como o faz exemplarmente o Papa Francisco.
Além  de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela quer sinalizar  um complemento daquilo que já existe mas que o reforça e enriquece com fatores  oriundos de outra fonte de cura. O modelo estabelecido de medicina não detém, por certo, o monopólio do diagnóstico e da  cura. É aqui que encontra o seu lugar a espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do médico/a e no cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos pela psicologia do profundo e da transpessoal, do valor terapêutico da confiança na condução normal da vida. Confiar significa fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela vale a pena, ela detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa. Essa confiança pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade, à convicção de que a realidade que captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter acesso a ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos da razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem sensível, como o sustentava sempre o grande físico quântico, prêmio Nobel, David Bohm, aluno predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens visíveis e ela sempre pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios médicos/as se surpreendem, com a rapidez com que alguém se recupera ou mesmo como situações, normalmente, dadas como irreversíveis, regridem e acabam levando à  cura. No fundo é crer que o invisível e o imponderável é parte do visível e do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual, a esperança imorredoura de que a vida não termina na morte, mas se transfigura através dela. Nossos sonhos de voltar à vida normal deslancham energias positivas que contribuem na regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se na palma da  mão de Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar ardentemente  a cura mas também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos  para si: eis a presença da energia espiritual. Não morremos, Deus vem nos buscar e nos levar para onde pertencemos desde sempre, para a sua Casa e para o seu convívio. Tais convicções espirituais funcionam como fontes de água viva, geradoras de cura e de potência de vida. É o fruto da espiritualidade.
(*) Leonardo Boff escreveu com Jean-Yves Leloup e outros, Espírito e Saúde, Vozes 2007.
Fonte:: http://www.franciscanos.org.br/?p=50084#sthash.reGm8p6D.dpuf