terça-feira, 26 de novembro de 2013

Introdução ao estudo da Bíblia

Por: Fr.Antônio Everaldo Palubiack Marinho
Fonte: http://www.itf.org.br/introducao-ao-estudo-da-biblia.html                                                        
“Até que período da vida a pessoa deve estudar a Torá (Lei)? Até o dia da sua morte, como está escrito: “E para que ela não seja removida de seu coração em todos os dias de sua vida” (Dt 4,9). Quando se para de estudar se esquece[1]
No percurso de nossa vida, muitas vezes, só acordamos para a necessidade da leitura e do estudo da Sagrada Escritura quando já atingimos a idade adulta, mas, mesmo assim, não reservamos para Ela um espaço suficiente para o aprofundamento assíduo e ordenado. Neste sentido, é sempre bom lembrar a respeito da seriedade e a importância que as palavras dos livros da Sagrada Escritura ocupavam e ocupam na vida de nossos irmãos Judeus e, ao mesmo tempo, o cuidado com a leitura e o aprendizado de seus filhos. Este cuidado aparece de um modo claro no livro do Deuteronômio (6,20-25):
“Amanhã, quando o teu filho te perguntar: “que são estes testemunhos e estatutos e normas que Iahweh nosso Deus vos ordenou?”,dirás ao teu filho: “Nós éramos escravos do Faraó no Egito, mas Iahweh nos fez sair do Egito com mão forte. Aos nossos olhos Iahweh realizou sinais e prodígios grandes e terríveis contra o Egito, contra o Faraó e toda a sua casa. Quanto a nós, porém, fez-nos sair de lá para nos introduzir e nos dar a terra que, sob juramento, havia prometido aos nossos pais. Iahweh ordenou-nos então cumprirmos todos estes estatutos, temendo Iahweh nosso Deus, para que tudo nos corra bem, todos os dias; para dar-nos a vida, como hoje se vê. Esta será a sua justiça: cuidarmos de pôr em prática todos estes mandamentos diante de Iahweh nosso Deus, conforme nos ordenou” (Dt 6,20-25).
Neste pequeno texto, observamos que a memória histórica e religiosa de um povo é transmitida para os seus filhos, ajudando-os a atualizar o passado, se situar no presente e a encontrar o caminho da vida.
Para elucidar a transmissão do saber aos filhos, citamos um trecho das Leis sobre o estudo da Torá:
 “Quando um pai deve começar a instrução de seu filho na Torá? Tão logo a criança começe a falar, o pai deve ensinar-lhe o texto: “Moisés nos ordenou a lei” (Dt 33,4) e o primeiro verso da Shemá (6,4). Mais tarde, segundo a capacidade da criança, o pai deve ensinar-lhes versos de cada vez, até que ela atinja a idade de seis ou sete anos. Então, dependendo da saúde da criança, ela deverá ser levada a um professor de crianças”. “O ensinamento para as meninas é praticamente igual a dos meninos”[2].
Sem-Título-3
A intenção dos escritores bíblicos
No estudo da Sagrada Escritura, devemos ter bem presente que na perspectiva dos escritores bíblicos, a ‘história’ se restringia a um meio para uma finalidade mais importante, e nunca era um fim em si mesma. Em sua concepção, a verdade de um acontecimento não residia no fato de ele ocorrer, mas no significado de que se revestia. Esperar que a Bíblia nos diga “o que de fato aconteceu” é esperar algo que os seus escritores nunca pretenderam que ela fizesse[3].
Uma compreensão apropriada da leitura
A falta de esclarecimento, de um estudo mais aprofundado e sério, muitas vezes, poderá levar-nos a uma leitura fundamentalista. Esta leitura parte do princípio de que a Bíblia sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deva ser lida e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por interpretação literal ela (leitura fundamentalista) entende uma compreensão primária literalista, isto é, excluindo todo esforço de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu desenvolvimento. Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico, como de qualquer outro método científico, para interpretação da Escritura. … Também o fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem[4].
“A verdadeira resposta a uma leitura fundamentalista é a ‘leitura crente da Sagrada Escritura, praticada desde a antiguidade na Tradição da Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para a vida do indivíduo fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este valor de testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das Sagradas Escrituras destinadas também à vida do fiel de hoje’, sem ignorar, portanto, a mediação humana do texto inspirado e os seus gêneros literários” [5].
Por isso, também temos que ter a consciência de que Bíblia para se formar levou mais de um milênio, e sua redação final aconteceu há dois mil anos. Assim, os leitores/estudantes atuais são impelidos a voltar no tempo para alcançar uma compreensão apropriada, a partir do conhecimento do contexto vital, pois “não se trata de uma palavra sem importância para nós: é nossa vida” (Dt  32,47).

A introdução à Bíblia

A Bíblia, na sua materialidade de livro palpável, que pode ser tomado, aberto e lido, leva-nos, em algum momento ou em outro, a nos interrogarmos sobre a forma pela qual foi elaborada nessa mesma materialidade, ainda que seja forte em nosso espírito a convicção de que ela foi “inspirada, de que é “obra divina” ou Palavra de Deus”. E aqui se apresenta um caminho particularmente adequado para se fazer uma introdução à Bíblia[6].
Do que trata a introdução à Bíblia? A introdução à Bíblia aborda elementos fundamentais para a compreensão da constituição da Sagrada Escritura. É uma etapa de preparação à introdução especial, isto é, o estudo mais detalhado de cada livro bíblico. Introdução bíblica é, portanto, dupla: introdução geral e introdução especial.
A Introdução geral estuda as questões que dizem respeito a todos os livros que compõe a Bíblia. Neste aspecto elencamos os passos que compreendem essa introdução:
  • A Bíblia: noções gerais
  • A Terra da Bíblia: Elementos de Geografia e arqueologia Bíblica
  • História de Israel e a formação dos livros bíblicos do AT e NT
  • História do Texto e das Versões
  • A interpretação da Bíblia
  • Línguas bíblicas
A Introdução especial estuda os aspectos particulares de cada livro, ou seja, quem foi seu autor, em que circunstâncias (de tempo e lugar, etc) foi ele escrito e principalmente qual o conteúdo da obra, seus textos mais significativos e os dados característicos de sua mensagem divina[7]. Elencamos aqui as disciplinas conforme a disposição didática que favorece uma visão de conjunto:

ATNT
I. Pentateuco                                       I. Evangelhos Sinóticos
II. Livros históricos                         II. Atos dos apóstolos
III. Livros proféticos                      III. Epístolas Paulinas
VI. Livros Sapiencias                    VI. Epístolas Católicas
                                                                V. Evangelho de São João
                                                                VI. Apocalipse

Uma palavra de ânimo para iniciar o seu estudo

Muitas vezes, não damos a devida importância à nossa memória histórica e religiosa. Não conseguimos ultrapassar os limites que nos cercam, e o desencanto e a falta de perspectiva tornam sempre mais difícil antever uma outra realidade. Por isso, não podemos perder de vista que o aprendizado no itinerário de nossa vida depende da razão, da intuição, do esforço e da insistência. Na insistência, podemos descobrir o nosso papel de garimpeiros, como “magistralmente é definido num diálogo recolhido há meio século pelo professor Fernando de Azevedo (1894-1974):
“…moço eu estou nesse negócio de catar pedras faz bem uns cinquenta anos. Muita gente me dizia para largar disso – cadê coragem? Cada um tem que viver procurando alguma coisa. Tem quem procure paz, tem quem procure briga. Eu procuro pedras. Mas foi numa dessas noites da minha velhice que entendi por que eu nunca larguei disso: só a gente que garimpa pode tirar estrelas do chão!”[8]
Portanto, se no nosso garimpo – “o estudo bíblico” – cultivarmos a paciência, o interesse, a persistência, a humildade e o encanto, poderemos também encontrar um “tesouro escondido”, “uma pérola de grande valor” (Mt 13,44-46).


[1]Cf. Maimôndes Rambam (1135-1204), Mishné ToráO Livro da Sabedoria, Imago, Rio de Janeiro 2000, 185.
[2] Cf. Maimôndes Rabam, Mishné ToráO Livro da Sabedoria, 184.206.
[3]Gabel J.B – Wheeler C.B., A Bíblia como Literatura –Uma Introdução, vol.10, Loyola, São Paulo 1993, 57.
[4]Cf. A Interpretação da Bíblia na Igreja, Pontíficia Comissão Bíblica, DP. 260, Vozes, Petrópolis 1994, 62.65.
[5] BENTO XVI, Exortação Apostólica Pós-Sinodal – Verbum Domini – Sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, Doc. 194, São Paulo, Paulinas, 20115, 87-88.
[6]Cf. Gibert P., Como a Bíblia foi escrita – Introdução ao Antigo e ao Novo Testamento, Paulinas, São Paulo 1999, 6.
[7]Ballarini T. (org.)., Introdução à Bíblia, vol.I, Vozes, Petrópolis, 1968, 23-24.
[8]Gentil P.; Alencar C., Educar na esperança em tempos de desencanto. Petrópolis: Vozes, 2003,

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A importância da espiritualidade para a saúde


Leonardo Boff
Fonte: Adital

Via de regra, todos os operadores de saúde foram moldados pelo paradigma científico da modernidade que operou uma separação drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das enfermidades e também para as formas de cura.

Imagem: semiologiamedica
Reconhecido este mérito, não se pode esquecer que se perdeu a visão de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da sociedade, da natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura nesta totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo cultivo desta totalidade, que zela pelo Eixo estruturador de nossa vida: é a dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o cultivo daquilo que é próprio do espírito que é sua capacidade de projetar visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e re-ligar todas as coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo mas a morte como ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade é toda atitude e atividade que favorece a expansão da vida, a relação consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda e a transcendência como modo de ser, sempre disposto a novas experiências e a novos conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro identificaram a base biológica da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal do cérebro. Verificaram empiricamente que sempre que se captam os contextos mais globais ou ocorre uma experiência significativa de totalidade ou também quando que se abordam de forma existencial (não como objeto de estudo) realidades últimas, carregadas de sentido e que produzem atitudes de veneração, de devoção e de respeito, se verifica uma aceleração das vibrações em hertz dos neurônios aí localizados. Chamaram a este fenômeno de "ponto Deus” no cérebro ou da emergência da "mente mística” (Zohar, QS: Inteligência espiritual, 2004). Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta a presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que, enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal sustentando todas as coisas. Dá-se conta de que pode, surpreendentemente, entabular um diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos de percepção do Elo que liga e re-liga todas as coisas. Sente-se inserido no Todo.
Este "ponto Deus” se revela por valores intangíveis como mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade. Despertar este "ponto Deus”, tirar as cinzas que uma cultura demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus; mas, sentir Deus mediante este órgão interior e fazer a experiência de sua presença e atuação a partir do coração. Ele é percebido como entusiasmo (em grego significa ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a vontade de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos a esta dimensão espiritual no cuidado da saúde e da doença? A espiritualidade possui uma força curativa própria. Não se trata de forma nenhuma de algo mágico e esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são próprias da dimensão espiritual tão válidas como a inteligência, a libido, o poder, o afeto entre outras dimensões do humano. Estas energias são altamente positivas como amar a vida, abrir-se ao demais, estabelecer laços de fraternidade e de solidariedade, ser capaz de perdão, de misericórdia e de indignação face às injustiças deste mundo como o faz exemplarmente o Papa Francisco.
Além de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela quer sinalizar um complemento daquilo que já existe; mas, que o reforça e enriquece com fatores oriundos de outra fonte de cura. O modelo estabelecido de medicina não detém, por certo, o monopólio do diagnóstico e da cura. É aqui que encontra o seu lugar a espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do médico/a e no cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos pela psicologia do profundo e da transpessoal, do valor terapêutico da confiança na condução normal da vida. Confiar significa fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela vale a pena, ela detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa. Essa confiança pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade, a convicção de que a realidade que captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter acesso a ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos da razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem sensível, como o sustentava sempre o grande físico quântico, prêmio Nobel, David Bohm, aluno predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens visíveis e ela sempre pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios médicos/as se surpreendem com a rapidez com que alguém se recupera ou mesmo como situações, normalmente, dadas como irreversíveis, regridem e acabam levando à cura. No fundo é crer que o invisível e o imponderável é parte do visível e do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual, a esperança imorredoura de que a vida não termina na morte, mas se transfigura através dela. Nossos sonhos de voltar à vida normal deslancham energias positivas que contribuem na regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se na palma da mão de Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar ardentemente a cura mas também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos para si: eis a presença da energia espiritual. Não morremos, Deus vem nos buscar e nos levar para onde pertencemos desde sempre, para a sua Casa e para o seu convívio. Tais convicções espirituais funcionam como fontes de água viva, geradoras de cura e de potência de vida. É o fruto da espiritualidade.
[Leonardo Boff escreveu com Jean-Yves Leloup e outros, Espírito e Saúde, Vozes 2007].

Transfiguração (Mc 9,2-10)

Frei Ludovico Garmus, OFM
A cena da transfiguração de Jesus acontece na viagem de Jesus a Jerusalém, onde seria preso, condenado à morte e crucificado. A viagem começa em Cesareia de Filipe, no extremo norte da tetrarquia de Herodes Filipe, onde Jesus faz uma pergunta crucial aos discípulos sobre sua pessoa e missão: “Quem as pessoas dizem que eu sou?”. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, em nome seu e dos discípulos confessa Jesus como o Cristo, o Messias tão esperado pelo povo. Pedro, certamente, pensava num Cristo, descendente do grande rei Davi, portanto, um Messias rei, que haveria de expulsar os dominadores romanos, instaurar um reino de justiça e reformar a religião judaica. Por isso pôs-se a repreender a Jesus quando ele começava a ensinar aos discípulos como seria a sua missão como Messias: “O filho do homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas, que devia ser morto e ressuscitar depois de três dias”. Jesus, porém, olhando para os discípulos, repreendeu a Pedro e chamou-o de Satanás, porque tentava desviá-lo da missão que o Pai lhe deu: “Tu não tens senso para as coisas de Deus, mas para as dos homens”.Na sequência vem um convite de Jesus dirigido a quem deseja segui-lo a renunciar a si mesmo, tomar a sua cruz, a por em risco a própria vida para salvá-la. E a viagem de Jesus rumo a Jerusalém continua, Jesus na frente, seguido pelos discípulos. De modo que “seis dias depois” chegam aos pés de um “monte alto e afastado”. Jesus gostava de lugares assim para rezar, para estar a sós com o Pai do Céu. Mas desta vez leva consigo três dos discípulos mais achegados: Pedro, Tiago e João. No passado, Moisés foi convidado a subir sozinho o monte Sinai, a fim de receber de Deus a Lei. Agora Jesus convida alguns discípulos para o acompanharem. Eles não sabiam o que ia acontecer. Mas Jesus os estava convidando a mergulhar com ele no mistério de seu Pai. Quis assim levantar um pouquinho o véu que encobria o mistério de sua identidade e de sua missão como Messias.
Marcos é sóbrio ao descrever a transfiguração, chamando a atenção apenas à extraordinária brancura das vestes de Jesus. Mais importante é o que diz sobre as figuras que aparecem em companhia de Jesus: “Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus”.
Moisés, depois de libertar o povo do Egito, foi convidado por Deus a subir ao monte Sinai (Horeb). Foi envolvido pela nuvem que encobria o monte Sinai. Mergulhou no mistério de Deus durante quarenta dias e quarenta noites. Ouviu tudo o que Deus queria comunicar ao povo e pôs por escrito nas duas tábuas da Lei. Moisés estava acostumado a se encontrar com Deus e vivia na sua intimidade. Quando voltava para junto do povo depois destes encontros com Deus, ficava com o rosto marcado com um brilho extraordinário. Por isso, ocultava o rosto com um véu. Sobre Moisés o próprio Deus falou assim: “Ele é um homem de confiança em toda a minha casa. Com ele falo face a face, às claras e não por figuras; ele contempla o semblante do Senhor” (Nm 12,7-8).
Elias é o profeta que recebe mensagens de Deus e as comunica aos reis e às pessoas. É o profeta que teve um encontro especial com Deus no monte Horeb, o monte em que Deus havia revelado os dez mandamentos a Moisés. Elias e os profetas são pessoas que têm uma intimidade particular com Deus. São pessoas que intercedem junto a Deus em favor do povo e recebem diretamente de Deus as palavras que devem comunicar ao povo em seu nome. São pessoas que mergulham no mistério de Deus.
Estes dois personagens estão conversando com Jesus, assim como estavam acostumados a conversar com Deus. Jesus, para nós cristãos, é o Filho de Deus. Portanto, estão conversando com o Filho de Deus. Certamente, gostaríamos também nós de entrar nesta conversa ou de saber qual era o assunto sobre que conversavam. Marcos não nos revela o assunto da conversa, mas Lucas diz que “falavam de sua morte, que teria lugar em Jerusalém”. A cena era tão bonita que os discípulos até esqueceram o detalhe da morte da qual Jesus lhes falava e que o esperava em Jerusalém. Levado pelo entusiasmo, mas também pelo temor diante da visão sagrada, Pedro propõe a Jesus: “Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Foi só Pedro dizer isso, esquecendo o destino trágico do Mestre em Jerusalém, e a maravilhosa visão sumiu, encoberta por uma nuvem de sombra. O véu do mistério que envolvia a Jesus foi erguido apenas um pouquinho, mas logo tudo se recolhe ao mistério da nuvem. E desta nuvem ressoou uma voz, explicando o que acabavam de ver: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!” Jesus era o filho amado, querido de Deus, apesar da morte que o aguardava em Jerusalém. Mas seu destino final não seria o da morte e sim da glória da ressurreição. Aos discípulos, a todos nós, cabe escutar, ouvir bem os ensinamentos e explicações que o próprio Jesus está dando sobre sua missão e sobre a missão de cada cristão: que o Filho do Homem vai ser rejeitado pelos chefes religiosos, vai ser morto, mas ao terceiro dia vai ressuscitar; que o discípulo deve tomar a cruz todos os dias e segui-lo; que para ganhar a vida é preciso saber perdê-la por causa de Jesus e do Evangelho. Assim como os judeus escutam as palavras de Moisés e dos Profetas, agora os discípulos de Jesus devem também escutar e seguir as palavras e ensinamentos de Jesus. Para entender o que se passa no mistério da nuvem, símbolo do mistério de Deus, é necessário agora ouvir com fé os ensinamentos do próprio Jesus. É destes ensinamentos ouvidos e praticados no dia a dia da vida cristã é que vai brotando e se aprofundando o conhecimento de Jesus Cristo.
Terminada a visão, ao descerem da montanha, Jesus proíbe de falar aos outros, o que acabaram de ver e ouvir. “Até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos”. Diz o texto que eles obedeceram a ordem, mas entre si se perguntavam o que significaria “ressuscitar dos mortos”. Era difícil entender que Jesus como o Messias, confessado por Pedro e esperado por todo o povo, como o descendente real de Davi, não tomaria o poder em Jerusalém, como imaginavam. Mais difícil ainda era compreender que Jesus, após sofrer a morte, haveria de ressuscitar; que para ganhar a vida era necessário perdê-la. Era cedo demais para entender tudo isso. Somente seria possível uma compreensão mais exata da pessoa e da missão de Jesus depois de sua morte e ressurreição, e da experiência de sua presença viva na fé da comunidade pós-pascal. Era preciso escutar o que o próprio Jesus estava dizendo aos discípulos e diria, no futuro, no seio das comunidades cristãs que anunciavam e viviam a sua boa nova.
* Frei Ludovico Garmus é da Ordem dos Frades Menores, doutor em Exegese Bíblica, atualmente leciona Exegese III: Pentateuco, Exegese IV: Livros Histórico, Exegese V: Livros Proféticos, Exegese VI: Livros Sapienciais na Faculdade de Teologia – ITF.
Fonte: http://www.itf.org.br/transfiguracao-mc-92-10.html

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A Caminhada de Jesus na Galiléia



Todo o Evangelho de Lucas está voltado para Jerusalém, isto é, a pregação a ação de Jesus é apresentada conforme uma viagem do
próprio Jesus, partindo da Galiléia em direção a Jerusalém. Esta viagem ou melhor esta caminhada, tem por objetivo mostrar que é em Jerusalém, o centro do poder judaico que Jesus vai se mostrar verdadeiramente como o Messias que vem mostrar o caminho da libertação para todos os povos.
Os capítulos 4,14 – 9,50 narram os acontecimentos da primeira etapa desta caminhada que acontece na Galiléia. Vale a pena perceber que acontecimentos são estes e que interesse tem Lucas em narrá-los.
Jesus inicia o seu ministério na Galiléia, região ao norte da palestina, onde encontravam-se pequenos e grandes proprietários de terras, além de um grande número de trabalhadores rurais, sofrendo o peso dos tributos e das leis sobre os seus ombros. Por esta razão era da Galiléia que se insurgiram vários grupos com lideranças esporádicas, buscando a libertação do jugo romano. Foi também da Galiléia que nasceu o grupo dos Zelotes que pelos anos 68 a 70 se rebelaram contra os Romanos provocando a destruição de Jerusalém, fato muito importante tanto para os judeus, como para os cristãos. A Região da Galiléia era considerada portanto, lugar de bandoleiros, subversivos, pessoas de Segunda categoria, aos olhos dos poderosos de Jerusalém. Tratava-se sempre de uma ameaça ao poder estabelecido. Jesus foi criado nesta região. Daí que muitas vezes tratavam-no como o Galileu. Sua residência era em Nazaré cidade pequena onde em dia de Sábado Jesus dá início ao seu trabalho de pregar a Boa Nova do Reino de Deus e mostrar através de sua prática que este Reino está presente no meio de nós.(Lc 4,14-21).
As primeiras palavras de Jesus em sua terra, de início provoca admiração, afinal, estava lendo o profeta Isaías 61,1-2. Porém, quando atualiza esta leitura, mostrando que o Espírito tem liberdade para agir onde quer e que a salvação não depende da pertença a um povo ou do seguimento cego da Lei, mas está aberta a todos quantos queiram abraçá-la através da proposta do Reino de Deus que chega primeiramente aos pobres, marginalizados, oprimidos, muitos dos que estavam ouvindo Jesus ficam furiosos a ponto de expulsá-lo de Nazaré, cidade onde se criara. Escreve Lucas que ele prosseguia o seu caminho (Lc 4,30).
Se compararmos o Evangelho de Lucas com o Evangelho de Marcos, vemos que existe semelhança entre Lc 4,31-6,19 e Mc 1,21-3,19. A partir de Lc 6,20 as semelhanças desaparecem para novamente voltarem em Lc 8,4-9,50 com Mc 4,1-9,40. Estes textos que não estão em semelhança com Marcos, Lucas provavelmente foi buscar em algum material que trazia principalmente os discursos de Jesus, pois aí temos: 6,20- 26 – As bem aventuranças e as maldições; 6,27-35 – o amor aos inimigos; 6,36-38 – A misericórdia e a gratuidade; 6,39-49 – a autenticidade no seguimento de Jesus. Já no capítulo 7, Jesus cura o servo do centurião (Lc 7,1-10), revive o filho da viúva de Naim (7,11-17) e na casa de um fariseu é ungido por uma mulher pecadora (Lc 7, 36-50). Estes três episódios mostram Jesus voltado para os pagãos, impuros e pecadores. Desta forma vai sendo colocado em prática o que Ele havia anunciado na Sinagoga de Nazaré. Lucas coloca também neste capítulo, o diálogo de Jesus com os discípulos de João Batista (Lc 7,18-35).
Na caminhada de Jesus pela Galiléia, aparecem duas estradas: Uma é a estrada das ações de Jesus; outra é a estrada da pregação de Jesus. Ambas as estradas vão se encontrar em um ponto que é comum: A Boa Nova do Reino de Deus que chega aos pobres e marginalizados. Lucas através desta caminhada de Jesus pela Galiléia mostra a força e o poder de Jesus, em contraste direto à força e o poder dominante que não consegue derrotar Jesus. É importante ter presente que esta chegada do Reino de Deus através de Jesus, está pleno de misericórdia e perdão, condições indispensáveis para que o Reino possa acontecer no meio dos homens e mulheres de todos os tempos.
Fonte: http://www.itf.org.br/a-caminhada-de-jesus-na-galileia-2.html