Comunhão no Amor
trad.: Pe. José Artulino Besen*
A nossa comunhão é
com o Pai
e com o seu Filho Jesus Cristo. 1Jo 1,3
«Deixa por agora, pois convém que cumpramos a justiça completa» (Mt
3,15)
O cristão deve constantemente passar de uma fé expressa com palavras a uma
fé expressa com a experiência. Na noite de Natal, o Cristo menino
mostrou-nos uma nova oportunidade, um novo poder do qual extrair uma
renovação ou, mais ainda, uma cura para o orgulho de nosso espírito que, com
os anos, tornou-se árido e viu as próprias chagas tornarem-se fétidas. Na
festa de Natal, abriu-se diante de nós uma porta que conduz a uma nova vida
de vizinhança com Cristo na sua infância, vizinhança que nos prepara para
entrar no reino, segundo a condição colocada pelo Senhor: Se não vos
tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3).
Na festa do batismo do Senhor no Jordão encontramo-nos diante da realização
da experiência à qual fomos associados no Natal.
Hoje Cristo, homem de trinta anos, adianta-se, com o espírito de um menino -
coisa deveras surpreendente - para ser batizado por um homem, João.
Fazendo-se semelhante a uma criança, Cristo ofereceu à humanidade um fresta
ou, melhor, uma verdadeira e própria fonte da qual receber força e
inspiração para resolver um problema fundamental: Quem é o maior? É uma
pergunta que ninguém pode ignorar; os próprios discípulos caíram nela e
Lucas descreve para nós este triste episódio:
Surgiu também entre eles uma discussão: qual deles seria o maior. E Jesus
disse-lhes: ‘Os reis dos pagãos dominam como senhores, e os que exercem
sobre eles autoridade chamam-se benfeitores. Que não seja assim entre vós;
mas o que entre vós é o maior, torne-se como o último; e o que governa seja
como o servo. Pois qual é o maior: o que está sentado à mesa ou o que serve?
Não é aquele que está sentado à mesa? Todavia eu estou no meio de vós, como
aquele que serve (Lc 22, 24-27).
Ora, no batismo, inclinando a cabeça sob a mão de João, Cristo ofereceu-nos
a solução para um problema ainda mais profundo e decisivo: “Quem é o mais
justo?” Afirmei que é mais profunda e decisiva porque a pergunta “Quem é o
maior?” está ligada às aparências externas. É possível que alguém evite o
problema deixando, na presença dos outros, o primeiro lugar ao irmão, de
forma a parecer ele mesmo mais humilde e mais justo. Mas, o obstáculo
verdadeiro e o risco maior está na pergunta “Quem é o mais justo?” . O
homem, no segredo do próprio coração, louva-se sempre a si mesmo e é-lhe
difícil louvar a justiça de um outro. No batismo de Cristo, pelo contrário,
vemos esta regra surpreendentemente mudada. Cristo, o mais justo,
apresenta-se diante de João, que é absolutamente privado de justiça (isto é,
de divindade) e, dobrando a cabeça com humildade, pede que João consinta em
batizá-lo.
Estejamos atentos porque, quando Cristo diz: Por ora deixa assim, porque
convém que assim cumpramos a justiça completa (Mt 3,15), não está recebendo
a justiça de João, mas “cumprindo” toda a justiça em favor de João e de toda
a humanidade. Mesmo se, aqui, Cristo parece receber para si a unção do
batismo para a justiça, de fato, através do seu batismo, está conseguindo a
totalidade da justiça não para si mesmo, mas para todo aquele que segue seu
exemplo. Com seu batismo, Cristo traz a justiça em favor da humanidade, a
justiça da submissão do maior ao menor. Com esse gesto, Cristo põe no homem
uma potencialidade que antes não existia: a possibilidade da submissão do
justo a um que é menos justo. Esta submissão deu vida a uma nova justiça que
Cristo revelou ao orgulho humano e que definiu como “justiça completa”.
Hoje Cristo oferece o melhor remédio para a doença mais grave: inclinando a
cabeça sob a mão de João e dele recebendo a unção batismal, Cristo nos
entrega o espírito da humildade ou, para expressar-nos com maior força, o
mistério da humildade que compreende ä realização da justiça completa”.
Aos olhos de Deus, o povo de Israel se qualificava essencialmente como povo
“’de dura cerviz” ou “que endureceu o pescoço”. Mas “dura cerviz” em relação
a quem? A Deus mesmo! O povo de Israel jamais inclinou a cabeça sob a mão
de Deus e não era, certamente, o único povo da terra a comportar-se deste
modo. Cristo veio para curar a dureza de cerviz do povo de Israel e do mundo
inteiro.
Ele inclinou a cabeça sob a mão de João com simplicidade e submissão, de
modo totalmente livre, e deu-nos um bálsamo divino com o qual ungir-nos o
pescoço para poder curar o mal do orgulho e receber o mistério de “toda a
justiça”. Esse é o bálsamo secreto. O ungüento divino e misterioso que,
quando usado, recupera para o nosso pescoço a elasticidade da infância e
permite-nos inclinar sempre a cabeça com simplicidade, para receber “toda a
justiça”.
Cristo apresentou-se a João como alguém que tinha necessidade de ser
batizado, é o que se depreende claramente das palavras de João: Eu tenho
necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim? (Mt 3,14); isto é: Tu
estás vindo a mim como alguém necessitado. Na realidade, Cristo não tinha
nenhuma necessidade de ser batizado, nem necessidade de coisa alguma, muito
menos de justiça, contudo, quando se apresentou para o batismo como alguém
que tinha necessidade dela e inclinou a cabeça em sinal de obediente
submissão, revelou-nos um dos mistérios da realização da justiça. Quando
nos dispusemos a fazer um ato de humildade e de submissão, devemos fazê-lo
como quem verdadeiramente se encontra em necessidade, não por favor! Cristo
revela e faz não aquilo que lhe era conveniente, mas aquilo que é
conveniente para nós, à nossa salvação e à realização da justiça em nossas
vidas.
Mas, ainda não chegamos ao pleno significado deste inclinar a cabeça diante
de João.
Este gesto de Cristo no Jordão, mexe profundamente com nossas consciências:
realizando-o, Cristo pôs a nu o nosso orgulho e revelou-nos o quanto estamos
longe de compreender e praticar a “verdadeira justiça”. Como é duro para um
simples cristão, ou para um padre, inclinar a cabeça para receber a bênção
da mão de um seu semelhante! O gesto realizado por Cristo ia além de toda a
lógica do bom senso: nele não havia nenhuma culpa, para que tivesse de
inclinar a cabeça divina sob a mão de um homem, para receber a unção.
Com essa submissão, que suplanta toda lógica do sacerdócio, Cristo
estabelece uma justiça que supera qualquer outra justiça em grandeza, e
eficácia, e intensidade. Escolheu o Jordão, no início de seu ministério
público, como o lugar mais oportuno para colocar o fundamento seguro no qual
legitimar qualquer ministério eficaz: “a cabeça inclinada”. Isso emerge e
também é confirmado pelo paralelo que encontramos no gesto realizado por
Jesus na noite em que instituiu o mistério da ceia do Senhor, quando se
inclinou, até prostrar-se por terra, para lavar os pés a seus discípulos. É
como se inclinar a cabeça na submissão e no arrependimento constituísse o
gesto inicial de todo mistério divino, batismo ou eucaristia.
O autêntico significado desta verdade emerge se recordamos aquilo que Cristo
disse a Pedro quando ele procurava evitar a lavação dos pés, tendo como
inaceitável ficar de pé como um patrão enquanto Cristo lhe estava diante
como um escravo a seu serviço; o Senhor o reprovou: Se não te lavo os pés,
não terás parte comigo (Jo 13,8). A mesma coisa aconteceu no batismo, quando
João procurou subtrair-se à missão de impor as mãos sobre a cabeça de Jesus
para batizá-lo na água. O Senhor logo o interrompeu dizendo: Deixa por
agora, pois convém que cumpramos a justiça completa (Mt 3,15). A firme
insistência de Cristo na absoluta necessidade de assumir, de sua parte, uma
determinada posição em relação ao Batista e a Pedro, revela-nos a
importância e a seriedade do mistério da humildade e da submissão no servir
a igreja no sacerdócio e na vida cristã em geral. É a via mestra para se ter
acesso à justiça. Eu vos dei o exemplo, para que, como eu fiz, também vós o
façais... Sabendo essas coisas, sereis felizes se as colocardes em prática (Jo
13, 15.17).
A verdade que nós, cristãos, nunca devemos esquecer é que, aqui, Cristo nos
revela sem meios termos a autêntica ordem das coisas, para tornar-nos
vigilantes; Cristo rejeita o conceito humano de justiça e o subverte
completamente, rejeita e trata com desprezo toda lógica de autodefesa.
Depois que Cristo inclinou a cabeça sob a mão de João, não podemos mais
perguntar seriamente: “Quem é o maior?”. Nossa dignidade consiste no
abandono deliberado e contínuo de qualquer dignidade e no entregá-la a quem
nos é inferior. Não podemos mais sustentar reivindicações de primado ou de
privilégio porque, aquilo que determina nossa justiça e nossa autêntica
liberdade, é o grau do nosso humilhar-se diante da comunidade; nossas ações
são dignas de aprovação à medida de nossa renúncia a qualquer pretensão de
direito.
A prontidão de João Batista em batizar Cristo foi um ato de obediência e
submissão, comparável à humilde e modesta resposta da virgem Maria quando
Deus a escolheu para gerar Cristo. A obediência e a submissão de João
Batista à ordem do Senhor de batizá-lo prepararam a estrada para Cristo, a
fim de que pusesse em prática, com o rito do mistério do batismo, o
revolucionário mistério da humildade, a que ele deu o nome de realização da
justiça completa. Aqui no Jordão - como mais tarde no lava-pés - o Senhor
demonstra o seu posicionar-se, como um escravo, sob a mão de João, para
cancelar a vergonha do homem que tinha rejeitado inclinar-se sob a mão de
Deus.
Detenhamo-nos ainda uma vez para contemplar como o céu se comove com os
gestos de humildade do Senhor Jesus. Quando Cristo nasceu e foi colocado na
manjedoura de uma estrebaria, os céus se abriram e o anjo, juntamente com os
exércitos celestes, apareceu para anunciar a boa notícia da salvação e para
glorificar a Deus. No Jordão acontece a mesma coisa: os céus se abrem, o
Espírito Santo aparece em forma visível e a voz do próprio Pai proclama a
identidade deste Homem que está inclinando a cabeça diante de João: Este é o
meu Filho predileto, no qual pus a minha complacência (Mt 3,17). Acontece
assim: à medida em que nós nos humilhamos na terra, Deus se revela a nós e
nos glorifica com os anjos do céu.
Notemos também que o Espírito Santo, assumindo a forma de uma pomba,
coloca-se sobre Cristo enquanto ele inclina a cabeça. Não aparece como uma
língua de fogo, como no dia de Pentecostes, nem semelhante a uma mão robusta
como aquela que desceu sobre a cabeça dos profetas do Antigo Testamento;
para aparecer, o Espírito Santo escolhe a forma mais em sintonia com quem
deve recebê-lo. Deste modo, o Espírito escolhe a forma de uma delicada pomba
para revelar a natureza do coração de Jesus: um coração manso, amoroso e
humilde.
Quanta necessidade temos, ainda hoje, da mansidão de coração de Jesus que se
inclina diante de João com simplicidade, humildade e submissão! O Espírito
Santo poderia descer sobre nós sob a forma de pomba e fazer-nos mais
próximos ao Cristo do Jordão e unir os nossos corações àquele coração manso
e humilde!
Na natividade, tomamos a mansidão da infância como modelo para viver cada
momento em preparação à entrada do reino dos céus. No Jordão, tomamos a
cabeça inclinada de Cristo como modelo para preparar-nos para viver em
humilde companhia do Espírito Santo e uma vocação para realizar no mundo.
Como Cristo nos estimula a retornar a ser e a permanecer sempre como
crianças, para poder entrar no reino dos céus, assim nos exorta a sermos
mansos como pombas. Esta é a unção de que temos necessidade para desenvolver
o nosso serviço e para viver no mundo. Cristo está sempre pronto para
dar-nos o espírito de humildade de uma criança, segundo a sua estatura em
Belém, e o espírito de humildade de uma pomba, segundo a estatura no Jordão:
assim estaremos preparados externa e interiormente para alcançar a plena
estatura de Cristo.
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen.