domingo, 20 de outubro de 2013

O Espírito Santo no Evangelho de Lucas

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Por: Prof. Dr. Carlos Frederico Schlaepfer
Uma das características marcantes na obra de Lucas é a presença do Espírito Santo. Tanto o Evangelho quanto os Atos estão repletos de notícias sobre sua ação. Vejamos onde e em que circunstâncias o Espírito Santo age no Evangelho de Lucas…
Os primeiros capítulos apresentam de modo marcante a ação do Espírito Santo: 1,15: Sua presença com João Batista é prometida a Zacarias;
1,35: O anjo Gabriel anuncia a Maria o nascimento de Jesus que somente será possível através do Espírito Santo;
1,41: Isabel cheia do Espírito Santo saúda Maria;
1,67: Zacarias profetiza através do Espírito Santo;
2,25-27: Simeão vai ao Templo movido pelo Espírito Santo;
3,16: João anuncia o Batismo no Espírito Santo através de Jesus;
3,22: O Espírito Santo em forma corpórea desce sobre Jesus no Batismo;
4,1: Jesus cheio do Espírito Santo é levado para o deserto;
4,14: Jesus é levado para a Galiléia pelo Espírito Santo;
4,18: Na Sinagoga, Jesus anuncia a sua missão pela força do Espírito Santo;
23,46: Jesus entrega seu Espírito a Deus antes de morrer;
24,49: Promessa de Jesus sobre a presença do Espírito Santo junto aos discípulos.
Como podemos observar, no início do Evangelho a presença do Espírito Santo é intensa. A partir do anúncio da missão de Jesus em Nazaré, Lucas não fala mais sobre a presença do Espírito Santo, somente no final, mesmo assim como promessa aos discípulos. Se olharmos para o livro dos Atos, vemos que novamente aparece a ação do Espírito Santo. O que será que Lucas quer mostrar com isto? Na verdade, Jesus possui e está possuído pelo Espírito Santo. Sua ação é a própria ação do Espírito Santo. Daí a presença marcante no início, desaparecendo exatamente quando Jesus começa o seu ministério público, isto é, quando Jesus inicia a Boa Nova através de sua ação e pregação. Somente na hora da morte de Jesus se voltará a ouvir falar sobre o Espírito Santo, como Espírito de Jesus que volta ao Pai. Depois vem a promessa do Espírito Santo junto aos discípulos.
É interessante notar que a ação do Espírito Santo no início do Evangelho, se dá sempre junto aos pobres e excluídos da época (estéril, velhos, mulheres): Isabel, Zacarias, Simeão, Ana, Maria, João e o próprio Jesus. Esta presença do Espírito junto aos pobres, somente é compreendida a partir dos pobres de Javé, isto é, os pobres com quem Javé conta para realizar o seu projeto de amor. Esta característica encontramos também com Jesus. Aliás, é primeiramente aos pobres que ele vem evangelizar. Também são dirigidas aos pobres, considerados bem aventurados, a promessa do Reino de Deus.
No Evangelho de Lucas portanto, a presença do Espírito Santo se dá como preparação da chegada de Jesus. Muitos anunciam, profetizam, louvam sempre inspirados por sua força e presença. Da mesma forma, no livro dos Atos é o Espírito Santo novamente quem vai animar os discípulos e comunidade a levar adiante a Boa Nova de Jesus. O Espírito anima a missão. Com Jesus a missão acontece. A Boa Nova se torna realidade: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para anunciar aos aprisionados a libertação, aos cegos a recuperação da vista, para por em liberdade os oprimidos, e para anunciar um ano de graça do Senhor”(LC 4,18-19). Esta dimensão missionária, voltada para os pobres, cativos, marginalizados não pode nem deve ser esquecida. De nada adianta louvar ou orar ao Espírito Santo se não nos colocamos nesta sua real dimensão. Deixar o Espírito agir, neste sentido, é colocar-se à disposição, a serviço do Reino de Deus.
Fonte: http://www.itf.org.br/o-espirito-santo-no-evangelho-de-lucas.htm

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Justiça da Humildade

Comunhão no Amor
trad.: Pe. José Artulino Besen*
A nossa comunhão é com o Pai
e com o seu Filho Jesus Cristo. 1Jo 1,3
«Deixa por agora, pois convém que cumpramos a justiça completa» (Mt 3,15)
O cristão deve constantemente passar de uma fé expressa com palavras a uma fé expressa com a experiência. Na noite de Natal, o Cristo menino mostrou-nos uma nova oportunidade, um novo poder do qual extrair uma renovação ou, mais ainda, uma cura para o orgulho de nosso espírito que, com os anos, tornou-se árido e viu as próprias chagas tornarem-se fétidas. Na festa de Natal, abriu-se diante de nós uma porta que conduz a uma nova vida de vizinhança com Cristo na sua infância, vizinhança que nos prepara para entrar no reino, segundo a condição colocada pelo Senhor: Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus (Mt 18,3).
Na festa do batismo do Senhor no Jordão encontramo-nos diante da realização da experiência à qual fomos associados no Natal.
Hoje Cristo, homem de trinta anos, adianta-se, com o espírito de um menino - coisa deveras surpreendente - para ser batizado por um homem, João.
Fazendo-se semelhante a uma criança, Cristo ofereceu à humanidade um fresta ou, melhor, uma verdadeira e própria fonte da qual receber força e inspiração para resolver um problema fundamental: Quem é o maior? É uma pergunta que ninguém pode ignorar; os próprios discípulos caíram nela e Lucas descreve para nós este triste episódio:
Surgiu também entre eles uma discussão: qual deles seria o maior. E Jesus disse-lhes: ‘Os reis dos pagãos dominam como senhores, e os que exercem sobre eles autoridade chamam-se benfeitores. Que não seja assim entre vós; mas o que entre vós é o maior, torne-se como o último; e o que governa seja como o servo. Pois qual é o maior: o que está sentado à mesa ou o que serve? Não é aquele que está sentado à mesa? Todavia eu estou no meio de vós, como aquele que serve (Lc 22, 24-27).
Ora, no batismo, inclinando a cabeça sob a mão de João, Cristo ofereceu-nos a solução para um problema ainda mais profundo e decisivo: “Quem é o mais justo?” Afirmei que é mais profunda e decisiva porque a pergunta “Quem é o maior?” está ligada às aparências externas. É possível que alguém evite o problema deixando, na presença dos outros, o primeiro lugar ao irmão, de forma a parecer ele mesmo mais humilde e mais justo. Mas, o obstáculo verdadeiro e o risco maior está na pergunta “Quem é o mais justo?” . O homem, no segredo do próprio coração, louva-se sempre a si mesmo e é-lhe difícil louvar a justiça de um outro. No batismo  de Cristo, pelo contrário, vemos esta regra surpreendentemente mudada. Cristo, o mais justo, apresenta-se diante de João, que é absolutamente privado de justiça (isto é, de divindade) e, dobrando a cabeça com humildade, pede que João consinta em batizá-lo.
Estejamos atentos porque, quando Cristo diz: Por ora deixa assim, porque convém que assim cumpramos a justiça completa (Mt 3,15), não está recebendo a justiça de João, mas “cumprindo” toda a justiça em favor de João e de toda a humanidade. Mesmo se, aqui, Cristo parece receber para si a unção do batismo para a justiça, de fato, através do seu batismo, está conseguindo a totalidade da justiça não para si mesmo, mas para todo aquele que segue seu exemplo. Com seu batismo, Cristo traz a justiça em favor da humanidade, a justiça da submissão do maior ao menor. Com esse gesto, Cristo põe no homem uma potencialidade que antes não existia: a possibilidade da submissão do justo a um que é menos justo. Esta submissão deu vida a uma nova justiça que Cristo revelou ao orgulho humano e que definiu como “justiça completa”.
Hoje Cristo oferece o melhor remédio para a doença mais grave: inclinando  a cabeça sob a mão de João e dele recebendo a unção batismal, Cristo nos entrega o espírito da humildade ou, para expressar-nos com maior força, o mistério da humildade que compreende ä realização da justiça completa”.
Aos olhos de Deus, o povo de Israel se qualificava essencialmente como povo “’de dura cerviz” ou “que endureceu o pescoço”. Mas “dura cerviz” em relação a quem?  A Deus mesmo! O povo de Israel jamais inclinou a cabeça sob a mão de Deus e não era, certamente, o único povo da terra a comportar-se deste modo. Cristo veio para curar a dureza de cerviz do povo de Israel e do mundo inteiro.
Ele inclinou a cabeça sob a mão de João com simplicidade e submissão, de modo totalmente livre, e deu-nos um bálsamo divino com o qual ungir-nos o pescoço para poder curar o mal do orgulho e receber o mistério de “toda a justiça”.  Esse é o bálsamo secreto. O ungüento divino e misterioso que, quando usado, recupera para o nosso pescoço a elasticidade da infância e permite-nos  inclinar sempre a cabeça com simplicidade, para receber “toda a justiça”.
Cristo apresentou-se a João como alguém que tinha necessidade de ser batizado, é o que se depreende claramente das palavras de João: Eu tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim? (Mt 3,14); isto é: Tu estás vindo a mim como alguém necessitado.  Na realidade, Cristo não tinha nenhuma necessidade de ser batizado, nem necessidade de coisa alguma, muito menos de justiça, contudo, quando se apresentou para o batismo como alguém que tinha necessidade dela e inclinou a cabeça em sinal de obediente submissão, revelou-nos um dos mistérios da realização da justiça.  Quando nos dispusemos a fazer um ato de humildade e de submissão, devemos fazê-lo como quem verdadeiramente se encontra em necessidade, não por favor! Cristo revela e faz não aquilo que lhe era conveniente, mas aquilo que é conveniente para nós, à nossa salvação e à realização da justiça em nossas vidas.
Mas, ainda não chegamos ao pleno significado deste inclinar a cabeça diante de João.
Este gesto de Cristo no Jordão, mexe profundamente com nossas consciências: realizando-o, Cristo pôs a nu o nosso orgulho e revelou-nos o quanto estamos longe de compreender e praticar a “verdadeira justiça”. Como é duro para um simples cristão, ou para um padre, inclinar a cabeça para receber a bênção da mão de um seu semelhante! O gesto realizado por Cristo ia além de toda a lógica do bom senso: nele não havia nenhuma culpa, para que tivesse de inclinar a cabeça divina sob a mão de um homem, para receber a unção.
Com essa submissão, que suplanta toda lógica do sacerdócio, Cristo estabelece uma justiça que supera qualquer outra justiça em grandeza, e eficácia, e intensidade. Escolheu o Jordão, no início de seu ministério público, como o lugar mais oportuno para colocar o fundamento seguro no qual legitimar qualquer ministério eficaz: “a cabeça inclinada”.  Isso emerge e também é confirmado pelo paralelo que encontramos no gesto realizado por Jesus na noite em que instituiu o mistério da ceia do Senhor, quando se inclinou, até prostrar-se por terra, para lavar os pés a seus discípulos. É como se inclinar a cabeça na submissão e no arrependimento constituísse o gesto inicial de todo mistério divino, batismo ou eucaristia.
O autêntico significado desta verdade emerge se recordamos aquilo que Cristo disse a Pedro quando ele procurava evitar a lavação dos pés, tendo como inaceitável ficar de pé como um patrão enquanto Cristo lhe estava diante como um escravo a seu serviço; o Senhor o reprovou: Se não te lavo os pés, não terás parte comigo (Jo 13,8). A mesma coisa aconteceu no batismo, quando João procurou subtrair-se à missão de impor as mãos sobre a cabeça de Jesus para batizá-lo na água. O Senhor logo o interrompeu dizendo: Deixa por agora, pois convém que cumpramos a justiça completa (Mt 3,15). A firme insistência de Cristo na absoluta necessidade de assumir, de sua parte, uma determinada posição em relação ao Batista e a Pedro, revela-nos a importância e a seriedade do mistério da humildade e da submissão no servir a igreja no sacerdócio e na vida cristã em geral. É a via mestra para se ter acesso à justiça. Eu vos dei o exemplo, para que, como eu fiz, também vós o façais... Sabendo essas coisas, sereis felizes se as colocardes em prática (Jo 13, 15.17).
A verdade que nós, cristãos, nunca devemos esquecer é que, aqui, Cristo nos revela sem meios termos a autêntica ordem das coisas, para tornar-nos vigilantes; Cristo rejeita o conceito humano de justiça e o subverte completamente, rejeita e trata com desprezo toda lógica de autodefesa. Depois que Cristo inclinou a cabeça sob a mão de João, não podemos mais perguntar seriamente: “Quem é o maior?”. Nossa dignidade consiste no abandono deliberado e contínuo de qualquer dignidade e no entregá-la a quem nos é inferior. Não podemos mais sustentar reivindicações de primado ou de privilégio porque, aquilo que determina nossa justiça e nossa autêntica liberdade, é o grau do nosso humilhar-se diante da comunidade; nossas ações são dignas de aprovação à medida de nossa renúncia a qualquer pretensão de direito.
A prontidão de João Batista em batizar Cristo foi um ato de obediência e submissão, comparável à humilde e modesta resposta da virgem Maria quando Deus a escolheu para gerar Cristo. A obediência e a submissão de João Batista à ordem do Senhor de batizá-lo prepararam a estrada para Cristo, a fim de que pusesse em prática, com o rito do mistério do batismo, o revolucionário mistério da humildade, a que ele deu o nome de realização da justiça completa. Aqui no Jordão - como mais tarde no lava-pés - o Senhor demonstra o seu posicionar-se, como um escravo, sob a mão de João, para cancelar a vergonha do homem que tinha rejeitado inclinar-se sob a mão de Deus.
Detenhamo-nos ainda uma vez para contemplar como o céu se comove com os gestos de humildade do Senhor Jesus. Quando Cristo nasceu e foi colocado na manjedoura de uma estrebaria, os céus se abriram e o anjo, juntamente com os exércitos celestes, apareceu para anunciar a boa notícia da salvação e para glorificar a Deus. No Jordão acontece a mesma coisa: os céus se abrem, o Espírito Santo aparece em forma visível e a voz do próprio Pai proclama a identidade deste Homem que está inclinando a cabeça diante de João: Este é o meu Filho predileto, no qual pus a minha complacência (Mt 3,17). Acontece assim: à medida em que nós nos humilhamos na terra, Deus se revela a nós e nos glorifica com os anjos do céu.
Notemos também que o Espírito Santo, assumindo a forma de uma pomba, coloca-se sobre Cristo enquanto ele inclina a cabeça. Não aparece como uma língua de fogo, como no dia de Pentecostes, nem semelhante a uma mão robusta como aquela que desceu sobre a cabeça dos profetas do Antigo Testamento; para aparecer, o Espírito Santo escolhe  a forma mais em sintonia com quem deve recebê-lo. Deste modo, o Espírito escolhe a forma de uma delicada pomba para revelar a natureza do coração de Jesus: um coração manso, amoroso e humilde.
Quanta necessidade temos, ainda hoje, da mansidão de coração de Jesus que se inclina diante de João com simplicidade, humildade e submissão! O Espírito Santo poderia descer sobre nós sob a forma de pomba e fazer-nos mais próximos ao Cristo do Jordão e unir os nossos corações àquele coração manso e humilde!
Na natividade, tomamos a mansidão da infância como modelo para viver cada momento em preparação à entrada do reino dos céus. No Jordão, tomamos a cabeça inclinada de Cristo como modelo para preparar-nos para viver em humilde companhia do Espírito Santo e uma vocação para realizar no mundo.
Como Cristo nos estimula a retornar a ser e a permanecer sempre como crianças, para poder entrar no reino dos céus, assim nos exorta a sermos mansos como pombas. Esta é a unção de que temos necessidade para desenvolver o nosso serviço e para viver no mundo. Cristo está sempre pronto para dar-nos o espírito de humildade de uma criança, segundo a sua estatura em Belém, e o espírito de humildade de uma pomba, segundo a estatura no Jordão: assim estaremos preparados externa e interiormente para alcançar a plena estatura de Cristo.
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen.