quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Carta de amor à humanidade.

Marcelo Barros
monge benetitino e escritor.
Fonte Adital
As comunidades católicas consagram setembro como mês bíblico e o próximo domingo é considerado o "dia da Bíblia”. Na América Latina, a consequência mais positiva da renovação da Igreja, suscitada pelo Concílio Vaticano II, foi dar às pessoas mais simples acesso à Bíblia e a alegria de, nela, descobrir uma palavra divina para animar e fortalecer a caminhada da vida.
No passado, às vezes, a Bíblia provocava medo. Os impérios coloniais se serviram da Bíblia para legitimar suas ambições. Até recentemente, ao tomarem o poder, ditadores faziam juramento com a mão sobre a Bíblia. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA, o presidente Bush aparecia na televisão com a Bíblia nas mãos e, em nome de Deus, conclamava o povo norte-americano a invadir países da Ásia. Diante disso, movimentos e grupos, comprometidos com a justiça e a libertação, chegaram a considerar a Bíblia um instrumento de violência e opressão e, por isso, rejeitá-la. Entretanto, a maioria dos grupos populares na América Latina não aceitou isso. Ao contrário, as comunidades passaram a ler a Bíblia e ligá-la à vida e ao caminho dos pobres. Em vários países do continente, homens e mulheres cristãos, animados pela palavra de Deus, participam ativamente da caminhada pela justiça e libertação.
Já nos anos 70, nos círculos bíblicos que animava por todo o Brasil, frei Carlos Mesters propunha ler a Bíblia não como um conjunto de textos isolados, nem como soma de citações para provar teses. Ele propunha ler a Bíblia, descobrindo em todas as suas páginas uma continuidade. De livro em livro, a Bíblia contém um fio norteador que nos orienta sobre qual é o projeto de Deus para nós e para o mundo. Em cada um de seus livros, podemos descobrir uma revelação progressiva desse projeto divino. O exegeta Francisco Orofino compara os textos bíblicos com fotografias tomadas em trechos de uma estrada do interior. A estrada têm muitas curvas, subidas e descidas. Alguém que se fixar apenas em uma foto pode pensar: "essa estrada vai para lá”, ou "ela é uma descida” e, assim, se equivocar. Para conhecer a estrada, precisamos saber de onde ela parte e para onde nos leva. As curvas e rodeios fazem parte do itinerário. Na parte mais antiga da Bíblia que, hoje, por respeito aos irmãos e irmãs do Judaísmo, preferimos chamar de "primeiro testamento”, o projeto divino é denominado de "aliança” que Deus faz com o seu povo. É um acordo, baseado em uma lei, que visa assegurar a justiça e o direito para todos, como condição de intimidade com Deus. No Novo Testamento, parte escrita pelas primeiras comunidades cristãs, a mesma realidade é chamada por Jesus de "reino ou reinado de Deus” e em outros textos, simplesmente de vida nova ou plenitude de vida.
Há muitos textos na Bíblia que parecem legitimar a violência, a intolerância e até as guerras. Essas realidades faziam parte da cultura do povo, como até hoje, constatamos na sociedade. Deus vai educando o seu povo para uma forma nova de viver e compreender a vida. Para nós, cristãos, Jesus é o cume dessa revelação. Ao se confrontar com a violência do mundo, sua reação foi de amor extremo por todos. Se alguém tinha de ser vítima daquele mundo violento, que esse alguém fosse ele mesmo. Ele não queria morrer e nem Deus queria que ele morresse, mas ele assumiu a morte por solidariedade aos que são vítimas da violência humana e para que, a partir de sua doação, todas as pessoas pudessem viver plenamente, tendo em si a própria vida divina, dada pelo Espírito.
Ao olharmos a história da humanidade, podemos pensar que Jesus fracassou. O mundo continua, cada vez, mais violento e cruel. A isso, o saudoso padre José Comblin respondia: "Isso mudará quando começarmos a viver a proposta de Jesus que, de fato, até aqui, nunca foi realmente experimentada”. Hoje, para quem aceita ler a Bíblia com olhos novos, esse é o desafio. Essa é a missão. Como diz a 2a carta de Pedro: "nesse caminho, fazemos bem em confiar na palavra dos profetas, (a Bíblia). Ela é como uma lâmpada que brilha em um lugar escuro, até que o dia clareie e o astro da manhã brilhe em nossos corações” (2 Pd 1, 19).

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Estoicismo - Teologia.

Por Émile Bréhier
Tradução de Miguel Duclós
Fonte: Portal  Veritas
O ritmo alternado do mundo é necessário para apreciar o alcance da teologia estóica, que tem sido designada como algo que detém a imanência e mesmo o panteísmo. Os escritores cristãos não deixaram de rir deste Deus presente nas partes mais íntimas do universo, e também da verdade de que o mundo é feito da substância de Deus e nele há de se reabsorver. Mas não se deve abusar de uma idéia justa; a verdade é que há no estoicismo gérmen de uma noção de transcendência divina, mas esta transcendência é de uma natureza totalmente diferente da do Deus de Platão ou de Aristóteles. Observamos, com efeito, que a transcendência de Deus, para Aristóteles ou os platônicos, não existe sem a afirmação da eternidade do mundo. Os platônicos nos repetem até a fartura que Deus não pode ser concebido sem a produção eterna do mundo, e que a existência atual do mundo é um dos aspectos ou condições da perfeição divina. De maneira muito diferente é tudo isto, segundo os estóicos: graças à conflagração, seu Zeus, Deus Supremo, tem a vida em certa medida independente do mundo; quando a “natureza deixar de existir, Deus repousará em si, entregue a seus próprios pensamentos” . Por outro lado, se Deus é imaginado como uma força interna das coisas, como um “fogo artista que procede metodicamente à produção das coisas”, ou como “um mel que flui através dos favos”, o estóico se dirige a ele, por outro lado, como a um ser providencial, pai dos homens, e que regula tudo no mundo em proveito do ser racional, ao “ser todo poderoso, chefe da natureza, que governa as coisas com a lei e a quem obedece todo esse mundo que gira ao redor da Terra, vendo aonde leva e deixando-se voluntariamente dominar por ele”. Os escritores cristãos tem assinalado esta espécie de conflito interno na noção de Deus dos estóicos: “Bem que dizem - objeta Orígenes que o ser providencial é da mesma substância que o ser que dirige, não dizem que é perfeito, diferente do que dirige”.

Se então o Deus de Aristóteles e dis platônicos é o deus transcendente de uma teologia sábia, o dos estóicos é objeto de uma piedade mais humana. Por acaso não admitiu, com o fim de aprová-las, todas as origens que a devoção popular dá a idéia dos deuses, a vista dos meteoros e a ordem do mundo, a consciência das forças úteis ou prejudiciais ao homem, e que nos ultrapassam, a nossas forças interiores que nos dirigem, como a paixão do amor ou o desejo de justiça, e, finalmente, os mitos dos poetas e a recordação dos heróis benfeitores? As provas da existência dos deuses que se apóiam na necessidade de admitir um arquiteto do mundo, de razão análoga, porém superior a dos homens, entram na mesma linha. Toda essa teologia popular implica em relações diretas e especiais entre Deus e os homens, ao passo que a teologia aristotélica ou platônica não concerce senão à relação geral de Deus com a ordem do mundo, sem referência particular aos homens. O mundo é, sobretudo, “a morada dos deuses e dos homens e das coisas feitas em vista dos deuses e dso homens”. Sobre este último ponto, se sabe até que ridículos extremos levaram os estóicos a afirmação de uma finalidade externa, atribuindo, por exemplo, às pulgas a função de nos despertar de um sono muito longo e aos ratos o feliz efeito de nos forçar à vigilar em boa ordem nossos assuntos.

Crisipo, sobre a crítica de um de seus adversários, foi obrigado a criar uma teodicéia, desde o início bastante débil, para explicar a presença do mal no universo. Dois argumentos mostram o mal indispensável à estrutura do universo: “nada é mais tolo do que crer - diz Crisispo - que poderia haver existido bem se ao mesmo tempo não tivesse havido males, já que o bem é o contrário do mal e não há contrário que não tenha seu contrário”. De acordo com um segundo argumento, Deus quer naturalmente o bem e nisto consiste seu principal desígnio; mas, para chegar a ele, se vê obrigado a empregar meios, que, tomados em si mesmo, são inconvenientes. A delicada espessura dos ossos do crânio, necessária ao organismo humano, não deixa de apresentar risco para a saúde. O mal é, então, acompanhamento necessário (parakolouthesis) do bem. Enfim, como disse Cleanto dirigindo-se a Zeus: “Nada acontece sem ti, exceto os atos que acompanham os malvados em sua loucura”. Neste terceiro argumento o mal moral ou vício se deve à liberdade do homem que se ergue contra a lei divina, ao passo que, no primeiro é devido à necessidade de um equílibrio harmônico: duas explicações contraditórias entre as quais os estóicos jamais foram capazes de escolher .