Por Maria Clara Bingemer
Há uma afinidade constitutiva e
uma irmandade ancestral entre teologia e literatura. Graças à
espiritualidade, ambas decorrem da inspiração. Atraindo-se como dois
polos relacionais, ambas as disciplinas fazem o ser humano mais humano e
a vida mais bela e digna de ser vivida.
Parábola
É muito difícil esconder o amor
A poesia sopra onde quer
O poeta no meio da revolução
Para, aponta uma mulher branca
E diz alguma coisa sobre o Grande enigma
Os sábios sonham
Que estão mudando Deus de lugar.
(Murilo Mendes)
O vento sopra onde quer, você ouve o
barulho, mas não sabe de onde vem nem para onde vai. Assim é com todo
aquele que nasceu do Espírito (Jo 3,8).
Atrevo-me a escrever este
texto sobre teologia e literatura com tremor e temor, mas com amor.
Conhecedora razoável e amante ardente de literatura e poesia, crente com
firmeza que a espiritualidade e a teologia têm parentesco próximo com o
espírito que inspira os poetas e os escritores, começo tentando situar
os termos.
Literatura. O
que é a literatura e qual é a melhor maneira de defini-la? A resposta
não é óbvia, em absoluto, porquanto o termo pode ser usado em muitos
sentidos diferentes. Pode significar qualquer coisa escrita em verso ou
em prosa. Pode significar unicamente aquelas obras que se revestem de
certo mérito. Ou pode referir-se à mera verborragia: “Tudo o mais é
literatura”. Para os nossos propósitos, será preferível começar por
defini-la de um modo tão amplo e neutro quanto possível, simplesmente
como uma arte verbal; isto é, a literatura pertence, tradicionalmente,
ao domínio das artes, em contraste com as ciências ou o conhecimento
prático. Seu meio de expressão é a palavra, em contraste com os sinais
visuais da pintura e da escultura ou com os sons musicais.
Poesia vem do grego poíesis,
que significa “ação de fazer algo”. Poesia, portanto, é práxis, apesar
de ser a mais gratuita das práxis. Entre as suas inúmeras definições, o
Aurélio e o Houaiss nos fornecem uma que interessa de perto a nossa
temática: entusiasmo criador, inspiração.
Espiritualidade vem de espírito, definido como a parte incorpórea, inteligente ou sensível do ser humano; o pensamento; a mente. Espiritual seria então o incorpóreo, o imaterial, sintonizado com o mistério, o místico, o sobrenatural.
Teologia, por sua vez, vem do grego theología,
“ciência dos deuses”. Pode ser o estudo das questões referentes ao
conhecimento da divindade – de seus atributos e relações com o mundo e
com os seres humanos – e à verdade religiosa. Em segundo lugar, pode
significar igualmente o estudo racional dos textos sagrados, dos dogmas e
das tradições do cristianismo. Pode ser ainda um tratado ou compêndio
sobre as verdades da fé; ou o conjunto de conhecimentos relativos aos
dogmas de fé ou que têm implicações com o pensar teológico, ministrados
em cursos ou nas respectivas faculdades. A teologia é linguagem segunda,
posterior a duas outras: a da revelação e a da fé. Sistematiza duas
palavras a ela anteriores: a que Deus mesmo falou, rompendo seu silêncio
eterno, e a que o ser humano fala, respondendo à Palavra de Deus,
pronunciada no meio da história, rompendo o silêncio do tempo e do
espaço.
1. Teologia e espiritualidade: separação e união
A separação entre teologia e
espiritualidade tem sua origem no divórcio ocorrido a partir do século
XVI, de consequências nefastas tanto para a espiritualidade, que se viu
reduzida em consistência e vigor, como para a teologia, que perdeu em
movimento, beleza e flexibilidade, tornando-se um corpo doutrinal
puramente explicativo e dedutivo (SOBRINO, 1985, p. 60). Uma teologia,
enfim, que poderia pensar e falar sistematicamente sobre Deus, mas
talvez, pelo menos em muitos casos, não deixava que Deus mesmo falasse.
O momento atual redescobre,
no interior da reflexão teológica, o direito de cidadania da
espiritualidade cristã, a qual não é simplesmente vulgarização
teológica, mas fonte rica e consistente de ensinamento novo e
irrepetível, sopro do Espírito na história, que permite à teologia de
hoje dizer novas palavras (VON BALTHASAR, 1974, p. 142).
Em virtude disso, a teologia
pode dialogar com a literatura e a poesia e descobrir com ambas uma
irmandade ancestral, pois, graças à espiritualidade, ambas decorrem da
inspiração.
2. Afinidades interdisciplinares entre teologia e literatura
Acreditamos que há uma
afinidade constitutiva entre teologia e literatura. Por isso, passamos,
em seguida, a levantar alguns elementos que, a nosso ver, podem
construir elementos de ligação e afinidade entre teologia e literatura.
- A inspiração: na origem tanto da literatura quanto da teologia está o fenômeno da inspiração. Da inspiração nos
dizem a fisiologia e a Bíblia que tem a ver com o ar em nossos pulmões.
Esse ar, sem o qual não se vive, diz a Bíblia que é como o próprio
Espírito de Deus, o qual leva e traz a vida, sem se saber de onde vem
nem para onde vai (cf. Jo 3,1ss). Sob a força da inspiração, os profetas
disseram com boca humana as palavras divinas, os hagiógrafos escreveram
o que Deus desejava que escrevessem. É o mesmo Espírito que enche de
inspiração o poeta, para que passeie pelas vias da beleza e diga o que
vê e o que sente em versos e palavras. Inspirada, igualmente, é a
profecia do profeta, sendo o Espírito que o possui e, por vezes, o
derruba o mesmo que simultaneamente o exalta e enche de entusiasmo.
Inspirada, por sua vez, é a poesia do poeta, a qual seduz e arrebata.
- A palavra: quando
dizemos que o meio de expressão literário é a palavra, ultrapassamos o
significado etimológico de literatura, que deriva do latim littera –
“letra” – e parece referir-se, portanto, de modo primordial, à palavra
escrita ou impressa. Com efeito, muitas civilizações, desde a grega
antiga à escandinava, francesa e inglesa, produziram importantes
tradições orais. Inclusive extensos poemas narrativos como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, as sagas islandesas e o Beowulf anglo-saxônico
foram, presumivelmente, cantados ou entoados por rapsodos e bardos
profissionais, séculos antes de terem sido escritos. Para que se possa
abranger essas e outras obras verbais, é útil considerar a literatura
uma arte verbal, lato sensu, deixando em aberto a questão sobre se as palavras são escritas ou faladas.
Por sua vez, a teologia
encontra seu nascedouro e sua base na palavra. Palavra que se crê
pronunciada por Deus e ouvida pelo ser humano na história, levando este
mesmo ser humano, segundo o teólogo alemão Karl Rahner, a ser definido
como um ouvinte da palavra (RAHNER, 1989, p. 37-59). E é igualmente
palavra escrita pelos hagiógrafos ou escritores sacros, que recolhem
aquelas tradições orais que permanecem por muito tempo sustentando a
identidade do povo de Deus e, finalmente, as registram por escrito.
Palavra declarada canônica pela Igreja, que seleciona entre aquilo que
foi escrito o que autenticamente pode encontrar sua fonte na inspiração
divina e na inerrância concedida como graça ao ser humano e declara essa
palavra normativa para tudo e por nada normatizada.
Muito especialmente a
teologia das três religiões monoteístas – não em vão ou à toa chamadas
religiões do Livro – não é pensável ou inteligível sem a Escritura, que
no judaísmo é o sinal concreto e sensível da presença de Deus no meio do
povo, no Alcorão é o próprio Verbo feito livro e no cristianismo é o
texto sagrado que narra a história das amorosas relações de Deus com
esse povo.
3. A arte de narrar e imitar a vida
A literatura é
sempre mais definida hoje como arte verbal. Em que sentido específico a
literatura é uma arte? Talvez a maneira mais antiga e mais venerável de
descrever a literatura como arte seja considerá-la uma forma de imitação. Isso
define a literatura em relação à vida, encarando-a como um meio de
reproduzir ou recriar em palavras as experiências da vida, tal como a
pintura reproduz ou recria certas figuras ou cenas da vida em contornos e
cores. Poderíamos dizer que a tragédia Édipo, de Sófocles,
“imita” ou recria as lutas íntimas de um homem soberbo e poderoso que,
lentamente, foi forçado a reconhecer e render-se à terrível verdade de
que era, involuntariamente, culpado de parricídio e de incestuoso
casamento com a própria mãe.
Se tentarmos avaliar essa
interpretação da literatura, teremos de reconhecer que ela toca em pelo
menos dois importantes pontos. Considerada em seu valor aparente, sugere
que a literatura imita ou reflete a vida; em outras palavras, a
temática da literatura consiste nas múltiplas experiências dos seres
humanos, em suas vivências. Ninguém negaria que isso é verdade.
Mas a dificuldade está em
que, ao defini-la dessa maneira, não dizemos grande coisa acerca da
literatura, dado que não levamos em conta o que acontece à sua temática –
que poderíamos chamar, na realidade, de sua matéria-prima – quando ela
faz parte de um poema, peça teatral ou romance (RICOEUR, 1996). O
segundo e importante ponto sugerido pela teoria da imitação é que vida
está sendo imitada no sentido de ser reinterpretada e recriada. Nesse
caso, a ênfase principal parece recair sobre o modo como a vida é
imitada – que tipo de simulação ou de figuração será escolhido ou que
espécie de espelho será usado para refletir as experiências humanas.
Essa concepção põe-nos mais perto de um dos aspectos essenciais da
literatura, a saber, que a matéria-prima é remodelada e até transformada
na obra literária.
Por sua vez, a Bíblia, fonte
da revelação e nascedouro da teologia, é tudo, menos um manual de
piedade. Trata-se do Livro da Vida por excelência. Paul Ricoeur nos diz
algo sobre isso ao refletir sobre a nomeação de Deus (o objeto central
da teologia) nos textos bíblicos. A nomeação de Deus sempre acontece no
seio de um pressuposto que é o seguinte: nomear Deus é realizar o que já
teve lugar nos textos que o pressuposto de minha escuta tem proferido (ibid.).
1) Significará isso que eu coloco os
textos acima da vida? A experiência religiosa não é a primeira? O
pressuposto não significa absolutamente que não exista “experiência”
religiosa. Todas essas experiências são alguns dos sinônimos do que
chamamos fé e, portanto, têm algo a dizer à teologia. Assim, a fé é um
ato que não se deixa reduzir a nenhuma palavra, a nenhuma escritura.
Esse ato representa o limite de toda hermenêutica porque ele é a origem
de toda interpretação (RICOEUR, 1977, p. 15-54).
O pressuposto, portanto, da
teologia, que é reflexão sobre a experiência de fé, não é que tudo é
linguagem, e sim que é numa linguagem que a experiência religiosa (no
sentido cognitivo, prático ou emocional) se articula. Mais precisamente:
o que é pressuposto é que a fé, enquanto experiência vivida, é
instruída (no sentido de formada, esclarecida, educada) no interior de
um conjunto de textos escritos que a pregação cristã traz de volta à
palavra viva (RICOEUR, 1996). Esse pressuposto da textualidade da fé
bíblica (bíblia quer dizer livro) distingue essa fé de qualquer outra.
Em certo sentido, pois, os textos precedem a vida (ibid.). Eu posso nomear Deus na minha fé porque os textos da Escritura já o nomearam antes de mim.
Frequentemente se afirma
que, quando a palavra viva é entregue às “marcas externas”, que são as
letras, os sinais escritos, a comunicação fica irremediavelmente
amputada: perdeu-se alguma coisa que dependia da voz, do rosto, da
comunidade de situação dos interlocutores. Não é falso. Pelo contrário, é
tão verdadeiro, que a reconversão da Escritura em palavra viva tende a
recriar uma relação não idêntica, mas análoga à relação dialogal de
comunicação. A reconversão, porém, recria a situação precisamente para
além da etapa escriturística de comunicação e com características
próprias que dependem dessa situação pós-textual da pregação.
O que a apologia unilateral
do diálogo desconhece – insiste Ricoeur – é a extraordinária promoção
que acontece no discurso quando ele passa da palavra para a escritura.
Libertando-se da presença corporal do leitor, o texto se liberta também
do seu autor, quer dizer: liberta-se, ao mesmo tempo, da intenção que o
texto parece exprimir, da psicologia do ser humano que fica por trás da
obra, da compreensão que esse ou essa tem de si mesmo/a e da sua
situação, da sua relação de autor com seu primeiro público destinatário
original do texto. Essa tríplice independência do texto em relação ao
seu autor, ao seu contexto e ao seu primeiro destinatário explica que os
textos estejam abertos a inúmeras recontextualizações pela escuta e
pela leitura, como réplica à descontextualização contida em potência no
ato mesmo de escrever (ibid.).
Um texto – dirá ainda
Ricoeur – é, em primeiro lugar, um elo numa corrente interpretativa: em
princípio uma experiência da vida é levada à linguagem, transforma-se em
discurso; depois o discurso se diferencia em palavra e escritura, com
os privilégios e vantagens que já foram ditos; a escritura, por sua vez,
é restituída à palavra viva por meio dos diversos atos do discurso que
reatualizam o texto. A leitura e a pregação são essas reatualizações da
escritura em palavra. Um texto é, desse ponto de vista, como uma
partitura musical que pode ser executada (alguns críticos, reagindo
contra os excessos do texto-em-si, chegam até a afirmar que é o
“leitor-no-texto” quem completa o sentido, por exemplo, preenchendo suas
lacunas, decidindo sobre suas ambiguidades ou até endireitando a sua
ordem narrativa ou argumentativa) (RICOEUR, 1977).
Conclusão: teologia, literatura e antropologia
Na teologia, a antropologia
ocupa um lugar central, não apenas porque é feita por seres humanos e
para seres humanos, mas também porque a humanidade pode iluminar e
esclarecer o caminho e a compreensão da revelação de Deus. Se Deus se
revela aos seres humanos, ele o faz por meio do humano, e a natureza
humana de Jesus, que é também reveladora do ser de Deus, é prova disso.
O inegável antropocentrismo
da literatura – que inventa e narra histórias humanas ou de personagens
outros que falam com palavras humanas – religa-se, então, ao
antropocentrismo da teologia.
E ambas, literatura e
teologia, na arte de escrever imitando a vida para transformá-la,
encontram sua fonte na inspiração que vem de mais além, cujo segredo é
progressivamente desvendado aos seres humanos que se dispõem a tratar
mais intimamente com o mistério desta vida doada gratuitamente pelo
Criador a suas criaturas.
Não é à toa, portanto, que a
área da interface entre teologia e literatura é uma das que mais
crescem na pesquisa hoje. Atraindo-se como dois polos relacionais, ambas
as disciplinas fazem o ser humano mais humano e a vida mais bela e
digna de ser vivida.
Bibliografia
RAHNER, K. O ouvinte da Palavra. In: ______. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulus, 1989.
RICOEUR, P. Entre filosofia e teologia II: nomear Deus. In: ______. Leituras 3: nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996.
______. Herméneutique de l’idée de Révélation. In: ______. La Révélation. Bruxelles: Publications des Facultés Universitaires Saint-Louis, 1977.
SOBRINO, J. Espiritualidade e teologia. In: ______. Liberación con Espíritu. Santander: Sal Terrae, 1985.
VON BALTHASAR, H. U. Teologia y espiritualidad. Selecciones de Teologia, Barcelona, v. 13, abr.-jun. 1974
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/temas-teologicos/teologia-e-literatura-afinidades-e-segredos-compartilhados/