Por Jurandir Freire Costa*
Fonte: http://vidapastoral.com.br/artigos/atualidade/a-moral-do-prazer-e-o-imaginario-consumista-contemporaneos/
A tendência da cultura atual de trocar o prazer dos ideais e
sentimentos elevados pelos prazeres sensoriais é o principal trunfo do
imaginário consumista. As pessoas passam a depender cada vez mais da
diversidade e da constância dos objetos para ter prazer, os quais, uma
vez adquiridos, já portam o signo da obsolescência e perdem o potencial
de estímulo.
1. Imaginação e desejo “consumistas”
Vou abordar o tema proposto no que tem de mais próximo da disciplina a
que me dedico: subjetividade e cultura. Nesse sentido, a primeira
observação a ser feita é que a concepção de sociedade regida pela
economia de mercado é tão imaginária quanto qualquer outra do gênero.
Dizer que uma concepção é imaginária não significa dizer que ela é
impotente para alterar a realidade. Ao contrário, boa parte do que
condiciona os ideais de vida e as condutas cotidianas é crença
imaginária. Imaginário não é sinônimo de “ilusório”, mas do que não tem
existência independente da imaginação. Ou seja, diferentemente das
coisas materiais, que independem dos desejos e aspirações humanos para
existir, as crenças culturais são produtos de nosso modo de agir e dar
sentido a nossas ações.
Assim, a sociedade de mercado, como qualquer artefato cultural,
depende das atitudes e disposições psicológicas dos indivíduos para agir
e pensar “como se ela existisse”. As disposições e atitudes que
contribuem para a reprodução da sociedade de mercado atual são, em
linhas gerais, as seguintes: o sujeito 1) deve se deixar seduzir pela
propaganda de mercadorias; 2) deve possuir uma identidade pessoal
flexível, compatível com as novas relações de trabalho; 3) deve estar
convertido à moral das sensações, ou seja, ter pretensões a satisfação
em curto prazo, em detrimento de satisfações que exigem projetos de
longo alcance.
As três características são indicativas da maneira como estamos nos
relacionando a) com o mundo dos objetos, b) com nossa história pessoal e
c) com nosso corpo. Analisemos cada uma em particular. Tomemos a
primeira, a relação com os objetos. Para que o mercado funcione é
preciso que o sujeito esteja sempre disposto a adquirir os novos
produtos criados pela indústria. A isso se costuma chamar “consumismo”. A
palavra consumismo, entretanto, é inadequada para designar o hábito
econômico ao qual se refere por dois principais motivos: primeiro, por
nos fazer crer que consumimos coisas que, de fato, compramos; segundo,
por dar a entender que somos todos iguais diante da possibilidade de
comprar mercadorias produzidas e vendidas em larga escala.
Na verdade, as únicas coisas que consumimos são substâncias
metabolizáveis como alimentos, fármacos etc. Por conseguinte, ao
empregar a palavra consumir, querendo ou não, estamos salientando nossa
condição de organismos físicos naturais. Desse ponto de vista,
obviamente, somos todos razoavelmente iguais, dado que nossas
necessidades biológicas são razoavelmente idênticas. Entretanto, se
olhamos o consumo como equivalente a poder de comprar, não é isso que
acontece. Comprar não é uma ação regida por necessidades biológicas, mas
um ato com implicações sociais. Diante de atos desse tipo somos todos
diferentes e desiguais.
Adquirir mercadorias por meio de compra já define “quem é quem” no
universo social. A maior parte da população tem um poder de compra
extremamente reduzido e alguns, para possuir o que desejam, roubam ou
furtam. Os chamados objetos de consumo, dessa forma, nem são consumíveis
nem estão igualmente disponíveis para todos os indivíduos. A produção
de objetos é seletivamente organizada de maneira a ser seletivamente
distribuída pelos que têm muito dinheiro, pouco dinheiro ou nenhum
dinheiro.
Os dois primeiros grupos, os dos compradores, estão incluídos na
sociedade e, por isso mesmo, são os defensores e propagandistas da ideia
de mercado como uma realidade independente dos hábitos individuais; o
terceiro, formado pelos excluídos da economia e da sociedade, é
diretamente estimulado a possuir o que não pode comprar e indiretamente
incitado a se apropriar de forma criminosa do que é levado a desejar.
Consumismo, portanto, é o modo que o imaginário econômico encontrou de
se legitimar culturalmente, apresentando as mercadorias como objetos de
necessidades supostamente universais e pré-culturais, e ocultando, por
esse meio, as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais
compradores.
Pode-se perguntar, porém: por que as pessoas se deixam convencer por
crenças racionalmente inconsistentes, quando não disparatadas? A
resposta usual aponta para a influência da publicidade e da moda. A
publicidade e a moda, diz-se, criam “desejos artificiais”, que, pela
repetição e pela sedução, são integrados ao repertório de aspirações dos
sujeitos. Há algo de verdadeiro nessa afirmação. Mas não da forma como é
entendida de modo corrente. Em primeiro lugar, não é verdade que nos
comportamos como compradores sonâmbulos, manipulados pelo “eixo do mal”
da publicidade e da moda. Essa imagem pejorativa dos sujeitos não se
sustenta em nenhum argumento empírico ou teórico. As pessoas, em geral,
sabem o que estão fazendo ao sair de casa para comprar objetos em
supermercados, lojas, butiques ou centros de compra. Ao comprar, estão
adquirindo o que julgam importante possuir, por uma ou outra razão. Se
essas razões são moralmente reprováveis por muitos, esse é outro
problema. O que não se pode mostrar é que o hábito de comprar produtos
industriais seja uma “compulsão” irracional por possuir “coisas
supérfluas”. Se assim fosse, nossa sociedade teria se transformado em um
imenso consultório psicológico-psiquiátrico, o que é manifestamente
inverossímil. Em segundo lugar, nem tudo que compramos nos foi
apresentado pela publicidade. As drogas ilegais são um exemplo gritante
de objetos industriais consumidos em grandes proporções que têm sua
venda e sua publicidade juridicamente proibidas. Em terceiro lugar,
mesmo admitindo que a moda pudesse nos obrigar a fazer coisas das quais
não estamos conscientes, ainda restaria explicar por que acreditamos que
“comprar” é o mesmo que “consumir”.
Esse é o ponto que pretendo explorar. Por que nos deixamos convencer
de que somos consumidores, a ponto de criar códigos de defesa
específicos e a assumir alegremente tal identidade social? A explicação
padrão para esse fenômeno diz o seguinte: comprar se tornou equivalente a
consumir porque o ritmo de produção das mercadorias nos obriga a
descartá-las depois de um breve uso. Consumo é uma metáfora que alude à
rapidez com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos. Ou
seja, tratamos os objetos industriais como tratamos substâncias que se
prestam à reprodução dos ciclos biológicos, donde a assimilação do ato
de comprar ao de consumir.
A explicação elucida o “quê”, mas não o “porquê”. Entendemos o
sentido metafórico da palavra consumo aplicado ao ato de comprar, mas
não as causas do hábito que o tornam inteligível. Por que os sujeitos
adotam atitudes consumistas se podiam se conduzir de modo diferente? A
resposta usual é, nesse caso, decepcionante: por causa da moda! A moda,
no entanto, não é um fenômeno moderno. Moda e propaganda existem desde o
início do capitalismo industrial. A réplica a isso é que a produção em
larga escala ainda não existia. Depois das grandes revoluções
tecnológicas e econômicas, a produção capitalista, para ser escoada,
teve e tem de ser vendida em um fluxo contínuo. Os indivíduos, portanto,
têm de comprar as mercadorias para que a máquina do lucro não pare.
Entretanto, o que significa a expressão “ter de comprar”? Não
conhecemos, no Ocidente capitalista, casos de pessoas arrastadas à força
para adquirir objetos industriais. É claro que não, pode-se argumentar
contra! Os consumidores não são fisicamente forçados a comprar o que não
desejam, são “seduzidos” pela propaganda comercial!
Voltamos ao ponto zero. O que determina a força do apelo consumista é
o fato de os indivíduos se deixarem seduzir pela propaganda de
mercadorias. Mas por que eles se deixam seduzir? Por que se deixam
converter à prática econômica que trata os objetos como coisas
descartáveis? Para avançar na compreensão da questão, é preciso
aprofundar as características psicológicas dos sujeitos que são o motor
do imaginário do mercado e do consumo.
Sugiro que os indivíduos se deixam seduzir pelo consumismo porque
esse hábito atende a reais necessidades psicossociais. Essas
necessidades derivam, entre outros fatores, da nova moral do trabalho e
da nova moral do prazer. Dito de outro modo, a publicidade não é
onipotente. Os indivíduos não são fantoches manipulados pela propaganda,
como se costuma pensar. Se grande parte deles se deixa persuadir pela
propaganda é porque, em certa medida, encontra na posse dos objetos
industriais um meio de realização pessoal. Essa aspiração à realização é
o motivo do anseio pelos objetos ditos de consumo. Vejamos, assim, como
as morais do trabalho e do prazer contribuem para a produção do desejo
de consumir.
2. Indivíduos desenraizados e demanda por novos produtos
Observemos, inicialmente, a nova moral do trabalho. As mudanças nas
relações de trabalho foram bem estudadas por Richard Sennett em A
corrosão do caráter (Rio de Janeiro, Record, 1999). Segundo o autor, as
transformações econômicas das três últimas décadas alteraram a
tradicional imagem do “trabalhador”. Os indivíduos, afetados pela
competição crescente por empregos inseguros, começaram a adaptar suas
condutas psicológicas ao perfil social do “vencedor”. O “vencedor” deve
ser maleável, criativo, afirmativo e, sobretudo, superficial nos
contatos pessoais e indiferente a projetos de vida duradouros. Para
ganhar mobilidade no volátil mundo do emprego, ele deve aprender a não
ter elos sólidos com família, lugares, tradições culturais, antigas
habilidades e, por último, com o próprio percurso biográfico. Sennett
define essa nova identidade como a do indivíduo “desenraizado” e Zygmunt
Bauman, em O mal-estar da pós-modernidade (Rio de Janeiro, Record,
1998), como a do “turista”. O turista ou o desenraizado é o indivíduo
que não se fixa em identidades passadas, que vê o mundo como um espaço
de circulação permanente e que jamais projeta o futuro a partir das
condições de vida presentes. Esse é um dos principais motivos pelos
quais o desejo de possuir objetos industriais se acentuou. Os objetos
passaram a ser aquilo que o turista pode ter, ao mesmo tempo, de mais
estável e mais mutável. De mais estável porque são as únicas coisas que o
sujeito transporta consigo onde estiver e para onde for, de mais
mutável por serem facilmente trocáveis se a nova condição social de
trabalho assim exigir. Em outros termos, a posse de mercadorias permitiu
ao indivíduo preservar a necessidade psicológica de estabilidade sem
renunciar à elasticidade pessoal exigida pelo mundo dos negócios.
Além disso, os objetos continuaram sendo o que sempre foram desde que
surgiram no cenário da economia capitalista, ou seja, a marca do
sucesso profissional e social. A aparência do sujeito afluente é
determinada pela maneira como se veste, pela qualidade dos objetos de
adorno pessoal, pelo tipo de automóvel, de artigos eletroeletrônicos e
de objetos de decoração doméstica que possui, pelos restaurantes que
frequenta e tipos de esporte que pratica, pelos lugares onde desfruta o
lazer, pelas viagens que faz etc. Os objetos de consumo “agregam” valor
social aos seus portadores. Eles são o crachá que identifica “o turista
vencedor” em qualquer lugar, situação ou momento de vida.
O consumo de objetos, portanto, não se impõe apenas pela invasão da
moda publicitária nas vidas pessoais. O aparato de objetos caros e
elegantes é o signo, por excelência, da distinção social de seus
possuidores. Por isso passaram a fazer parte da identidade pessoal dos
mais abastados e, por extensão, da imensa maioria da sociedade. É
entendível, assim, que a compra incessante de novos produtos se torne
uma “demanda imaginária” tão coercitiva quanto qualquer “necessidade
biológica”. Afinal, ninguém se contenta em sobreviver fisicamente, pelo
consumo de nutrientes. Somos seres de cultura que não têm apenas fome de
pão, mas também de prestígio social. A satisfação de se sentir aprovado
e admirado é um item indispensável para o equilíbrio emocional de todos
nós.
3. A moral do prazer
Passemos, agora, à moral do prazer, o outro coadjuvante no enredo
imaginário do mercado e do consumo. Esse tópico é, sem dúvida, uma
criação inédita da cultura atual. A moral do prazer é o maior trunfo do
imaginário consumista. Por meio dela, a ideia do consumismo ganha um
curioso semblante de plausibilidade. Vejamos de que maneira.
Toda cultura, para permanecer viva, deve abrir canais de satisfação a
seus participantes. Satisfação é o estado físico-mental alcançado ao
levarmos a bom termo nossas intenções. As formas pelas quais nos
“sentimos satisfeitos” são variadas, mas um dos propósitos fundamentais e
constantes da existência humana é obter prazer e evitar dor. Os
prazeres, por seu turno, são formas de satisfação que se exprimem de
diversas maneiras. Podemos sentir prazer em realizar “ações cívicas”, em
experimentar emoções sentimentais voluptuosas ou agradáveis, em fruir
emoções estético-religiosas, em gozar com sensações corporais de
bem-estar e de êxtase etc. Esses e outros modos de satisfação prazerosa
são componentes indispensáveis ao funcionamento da cultura e à formação
de identidades pessoais.
Cada cultura, no entanto, permite a realização de certas condutas e
interdita outras. Uma cultura na qual tudo fosse igualmente possível não
seria “uma cultura”. Cultura é delimitação de possibilidades e
impossibilidades. No convívio humano existem sempre comportamentos que
são incentivados e aprovados e outros desestimulados e condenados. Em
nossa época, a grande inovação em matéria de condutas é a busca do ideal
de prazer corporal ou do prazer das sensações. Hoje procuramos os
prazeres sensoriais como há dois ou três séculos perseguíamos os
prazeres sentimentais do romantismo e da vida familiar, os prazeres do
reconhecimento pela operosidade e pela honestidade do trabalho, os
prazeres da admiração pelos grandes feitos políticos e militares, os
prazeres da alma no exercício das virtudes religiosas etc.
Duas observações são, contudo, necessárias, antes de prosseguir. Em
primeiro lugar, afirmar que, atualmente, elegemos o prazer sensorial
como um ideal nem significa dizer que antes não o usufruíssemos nem que
hoje tenhamos aberto mão dos antigos ideais de prazer cívico,
sentimental, religioso etc. Agora, como anteriormente, continuamos a
buscar realizações sentimentais e satisfações sensoriais. O que mudou
foi o valor que passamos a atribuir às sensações físicas prazerosas na
constituição das subjetividades. Esse valor foi enormemente inflacionado
e veio a se tornar um ponto de apoio privilegiado na constituição das
identidades pessoais.
A importância que a boa forma física, a boa saúde, o gozo com drogas
ou com sexo tinham na formação psicológico-moral dos sujeitos era, até
bem pouco tempo, comedida. No reinado da clássica moralidade burguesa,
ninguém era particularmente admirado por ser capaz de se manter belo,
jovem ou saudável além do que o correr do tempo permitia. Do mesmo modo,
a liberdade sexual que hoje usufruímos era quase impensável há três ou
quatro décadas, assim como eram impensáveis a extensão e a intensidade
que o consumo de drogas psicoativas veio a ter. O que definia a
qualidade moral e o apreço social de uma pessoa era a vida sentimental
rica, a excelência na vida pública, a integridade religiosa, as
qualidades artísticas ou científicas etc. Os prazeres físicos do corpo
eram apenas a matéria bruta que devia ser modelada para dar lugar aos
ideais de perfeição moral, intelectual, espiritual ou emocional etc.
Em segundo lugar, ao falarmos de culto às sensações prazerosas,
estamos diagnosticando um estado de coisas, e não desaprovando, de forma
puritana, tais aspirações. A atitude moralista que se refere à “busca
do prazer” como um “pecado secular” me parece equivocada. Essa atitude
insinua que o prazer físico é, por si, condenável e que os indivíduos
hoje vivem em um eterno festim de comida, sexo e droga. A meu ver, além
de imprópria, essa imagem é, principalmente, falsa. Ela é imprópria
porque, se os indivíduos decidirem que deverão viver para os prazeres
físicos, e isso não vier a destruir os compromissos com o Bem comum, não
vejo nenhum bom motivo para que se os desaprove; é falsa porque
simplesmente não é verdade que a maioria dos praticantes da moral do
prazer sensorial se comporte como o moralismo conservador e
pequeno-burguês fantasia que ela se comporta. Por tudo que podemos
constatar, o ideal do prazer físico continua sendo um “ideal”, ou seja,
algo que se almeja e dificilmente se alcança.
Assim, o problema da felicidade das sensações não reside nos
pretensos excessos sensuais de seus partidários – afirmação que ninguém
vê ou prova –, mas nas contradições que ela produz. Isto é, esse ideal
promete o que não dá e dificulta a participação e o compromisso do
sujeito com os objetivos do Bem comum. Essas são as razões pelas quais
podemos criticar, do ponto de vista ético, a nova moral do prazer, e não
por fantasias despropositadas como as que atribuem aos indivíduos
excessos sensuais inexistentes.
Feita a ressalva, voltemos ao ponto central: a relação do ideal do
prazer com o imaginário consumista. A moral contemporânea do prazer,
como a nova moral do trabalho, dá origem à demanda por objetos
descartáveis. Uma diferença, no entanto, separa as duas. No registro do
trabalho, os objetos são desejados porque compõem a aparência social do
turista ou do desenraizado “vencedor”. Pelo fato de serem portáteis e
intercambiáveis, eles se tornaram instrumentos cômodos de exibição do
sucesso profissional e social.
Na moral do prazer sensorial, a função dos objetos é outra. O prazer
das sensações se baseia fundamentalmente nas disposições físicas do
corpo para ser estimulado. Diferentemente do prazer sentimental, que
pode durar na ausência dos estímulos sensório-motores, o prazer
sensorial depende do estímulo físico imediato e da presença do objeto
fonte da estimulação.
A única maneira de fazer o prazer físico durar é prolongar a
excitação. Nesse caso, entretanto, o sujeito esbarra no limiar de
excitabilidade biológica: se o estímulo for forte e durar
demasiadamente, dará lugar à dor; se for fraco, ao desinteresse. Resta,
então, ao sujeito recorrer aos objetos como fonte de reestimulação
permanente do corpo.
É nesse ponto que o consumo entra no script da felicidade das
sensações. O sujeito, para escapar da enfermidade do prazer físico,
passa a depender, cada vez mais, da diversidade e da constância dos
objetos para ter prazer. Como sem objetos não há prazer e como um mesmo
objeto esgota rapidamente sua capacidade de despertar a excitação
sensorial, é preciso ter sempre à mão algo com que gozar. Além disso,
esse algo deve ser permanentemente substituído, para que o hábito não
enfraqueça a intensidade do estímulo e elimine o gozo. Por esse motivo, o
ciclo de consumo dos objetos se tornou interminável. Além de procurar
objetos próprios à excitação dos sentidos relacionais, ou seja, os cinco
sentidos, os sujeitos procuram manter em alta intensidade o gozo
sexual, o frisson das experiências motoras violentas e o êxtase
sensorial neurofisiologicamente induzido por drogas psicoativas etc.
Os objetos são cada vez mais solicitados a superar os limites da
excitação física do corpo. E, graças a isso, começaram a assumir um
semblante que nunca tiveram, qual seja, o de objetos consumíveis. A
metamorfose ocorreu por dois principais fatores. Primeiro porque é mais
fácil imaginar o consumo de coisas que experimentamos sensorialmente do
que de coisas que, apenas indireta e secundariamente, excitam nossas
sensações. Pensar que consumimos imagens visuais excitantes ou drogas
psicoativas é mais verossímil do que pensar que consumimos relógios,
móveis, roupas ou automóveis. Segundo porque o impulso para comprar
objetos, de fato, se fortaleceu à medida que nos tornamos mais
dependentes deles para ter prazer. A insaciabilidade por comprar se
acentuou porque o ideal de prazer hegemônico fez do objeto a via real da
satisfação pessoal.
Como se vê, o imaginário do mercado e do consumo não se sustentaria
sem que contribuíssemos ativamente para sua perpetuação. São nossos
ideais de felicidade que nos empurram para a aquisição permanente de
objetos que, ao ser adquiridos, já portam o signo da obsolescência. O
tipo de satisfação ao qual aspiramos pede uma renovação incessante das
fontes de estimulação sensorial. Os objetos são os meios que encontramos
para alcançar os fins que desejamos.
4. Sociedade, classes e ideais
Não saberia responder com segurança à indagação de vocês sobre a
apropriação diferenciada da ideologia do consumo pelas diferentes
classes sociais. Acho, no entanto, que a atitude consumista não depende
do nível de renda. É uma atitude diante da vida, e, por conseguinte,
diante dos objetos que se pode possuir. No Brasil, a maioria tem uma
renda pessoal ou familiar desprezível, mas, mesmo assim, se comporta
como se tivesse uma renda alta, quando se trata de usar objetos com
coisas descartáveis.
Não consumir significa perceber os objetos como coisas que devem
durar, que devem significar algo mais que a satisfação imediata de
necessidades passageiras. Significa adotar diante do mundo uma atitude
de cuidado. Significa estar consciente de que a sociedade ou o planeta
não são um depósito infindável de recursos que podemos saquear, sem
respeito ou preocupação com o que virá depois de nós. Por esse aspecto,
não vejo grandes diferenças entre os pobres e os ricos. Os mais
poderosos e influentes, pela persuasão ou dissuasão, terminam por impor a
quase todos seus ideais de sucesso econômico, apreço social e
satisfação psicológico-moral.
Não penso que o fundamental na moral do consumo seja a posse de
objetos por meio de compra. É entendível que, hoje em dia, com o
progresso tecnológico, as crianças, por exemplo, disponham de mais
brinquedos e meios de lazer do que dispunham antes. O problema não está
na quantidade de coisas que podemos ter, nem mesmo na quantidade de
coisas que podemos acumular. A questão é a atitude irresponsável para
com o patrimônio material e moral da sociedade em que vivemos. Ter
poucos objetos e tratá-los como os que possuem muitas coisas e as tratam
de modo “consumista” resulta na mesma consequência ética: tudo que
existe é para ser devorado e jogado fora, pouco importa o efeito desse
gesto perdulário.
No início do capitalismo industrial, por exemplo, os indivíduos
compravam muitas coisas, se considerarmos o montante de riquezas
disponíveis e o desenvolvimento técnico da produção industrial. Se vocês
observarem com atenção os costumes das famílias burguesas no século
XIX, verão que as casas eram apinhadas de objetos de decoração,
brinquedos de criança, sem contar os infinitos adereços do vestuário
masculino e feminino. Mas nada disso impedia os sujeitos de pensarem que
o que possuíam devia durar. Nada disso impedia os sujeitos de viverem
não apenas para si, mas para as futuras gerações de filhos e netos. Nada
disso impedia que os burgueses mantivessem vivos ideais de progresso
científico, de dignidade do trabalho, de honra familiar, de crença na
história, de sentimento de responsabilidade para com a nação etc. Bem
entendido, não quero, com isso, idealizar o modo de vida burguês
oitocentista. Sei bem que muita coisa disso tudo foi construída em cima
de preconceitos sexuais, raciais, religiosos, de classe social ou
outros. O principal, entretanto, é o compromisso com o Bem comum, com
algo que transcenda nossas vidas passageiras e o fugaz prazer de nossos
corpos.
A atitude consumista moderna é dissoluta desses ideais. Essa é sua
maior nocividade. Ela rompe o fio da tradição e nada põe no lugar. É uma
cultura do imediato, do descompromisso consigo, com o outro e com o
devir de todos.
5. Resistências e alternativas
Entretanto, nenhuma construção cultural, por persuasiva que seja, é
monolítica. A ideologia do mercado e do consumo não é exceção. Todo
poder desperta resistências, como disse Michel Foucault. As resistências
suscitadas pelo imaginário do mercado são de duas ordens. A primeira é a
resistência pela fraqueza dos excessos; a segunda, pela força da
criação de alternativas às ideias dominantes. Como exemplo da primeira,
cito os vários distúrbios psicológicos derivados do modo de viver atual.
A pressão pela boa forma, pela saúde e pela longevidade vem produzindo,
em escala crescente, uma série de sintomas hipocondríacos, transtornos
da imagem corporal e síndromes de dependência química. Além disso, o
estilo de vida competitivo, a insegurança nos postos de trabalhos e a
ansiedade pelo sucesso econômico vêm gerando um rol de sintomas típicos
do estresse físico e mental: insônia e dores musculares crônicas,
desânimo, depressões mitigadas, síndromes de pânico e fobias sociais
etc.
Os indivíduos, com maior ou menor clareza, sabem que o preço pago
para ser “vencedor” é extorsivo. Muitos começam a buscar refúgio em
práticas corporais, de natureza leiga ou espiritual, que os afastem dos
ideais de satisfação que dominam o imaginário do mercado e do consumo.
Mesmo sem perceber, esses sujeitos criam focos de contestação ao modo de
vida hegemônico pelo simples fato de redefinirem seus ideais de
felicidade. Aos poucos, os sinais sociais de superioridade de classe
deixam de ter apelo para uma parcela significativa de pessoas para as
quais as experiências pessoais de sofrimento acabaram produzindo um
relativo distanciamento da moral dominante.
Portanto, se nos perguntarmos quais as perspectivas para as pessoas
na sociedade de mercado, diria que são muitas, mas que todas convergem
para duas saídas principais: 1) continuar a perpetuar um modo de vida
que me parece pobre, por estreitar os horizontes da ação humana em uma
só direção, qual seja, a do sucesso econômico, do cuidado obsessivo com o
próprio prazer e da indiferença em relação ao mundo; 2) voltar-se para o
outro, construir uma sociedade na qual todos tenham direito ao mínimo
necessário à satisfação das necessidades elementares, para que, então,
possamos ser, de fato, livres para criar tantas formas de sermos felizes
quantas possamos imaginar.
Como exemplo de resistência pela força da criatividade, cito o
surgimento das preocupações ecológicas e o ressurgimento de preocupação
política na modalidade da responsabilidade social. O movimento ecológico
vem mostrando quão predatória é a prática do consumismo compulsivo e
indiscriminado. O argumento da dilapidação dos recursos naturais do
planeta vem conquistando adeptos, que veem no consumismo a
inconsequência dos que não conseguem pensar no futuro das novas
gerações. Esse movimento, embora incipiente, e muitas vezes cooptado
pelos poderosos, vem se afirmando como algo digno de respeito, o que não
acontecia há duas ou três décadas. Uma grande quantidade de pessoas,
sobretudo as mais jovens, se sente atraída e entusiasmada por profissões
que lidam com o cuidado ambiental, e isso é um indício importante de
mudanças nas mentalidades coletivas.
No que tange à política de responsabilidade social, é impressionante
observar o número de pessoas que vêm se dedicando a trabalhos do chamado
terceiro setor. São pessoas com visões de mundo, trajetórias de vida e
origens de classe bastante diferentes, mas que encontram nos ideais de
justiça e respeito pelo outro um objetivo que merece ser perseguido.
Todas elas acreditam que o estilo individualista de preocupação
exclusiva com o próprio corpo e o sucesso social não basta para dar
sentido à vida. O número de participantes nesse tipo de atividade social
cresceu de forma impressionante no Brasil dos últimos 20 anos e
torna-se uma opção também para os jovens. Os efeitos dessa nova maneira
de pensar ainda são, por enquanto, tímidos, mas tudo leva a crer que
estamos diante de uma mudança de hábitos de vida na qual os ideais do
Bem comum voltaram a ter o respeito que merecem.
Mas vocês me perguntam como acelerar as mudanças? Obviamente não há
receitas. Primeiro porque não acredito em mudanças pensadas por um só.
Mudança é uma questão de prática, de experimentação de muitos ou de
todos. Segundo porque os próprios horizontes da mudança precisam ser
rediscutidos dia a dia. Uma coisa, contudo, me parece importante
realçar. Toda mudança, para ser estável, duradoura e produtiva, tem de
ser contínua e lenta. As grandes transformações históricas que
conhecemos, e que se deram de forma brusca, em meio a banhos de sangue,
em geral retrocederam ao que temos de pior. Portanto, a paciência e a
persistência são as melhores armas para as mudanças responsáveis e
humanamente frutíferas. Ora, o que a sociedade de consumo vem justamente
minando por baixo é a confiança que temos na história e em nosso valor
como agentes de transformação social.
O grande exercício e o grande desafio que enfrentamos é o de
continuar acreditando em um mundo melhor para nós e para as gerações
futuras. Sei que pode parecer duro ter que suportar regimes econômicos
exploradores e concentradores de riquezas sem pensar em tomadas de poder
pela violência. Mas, ao olharmos a história, veremos que as aquisições
sólidas que fizemos, em matéria de progresso no convívio social, foram
todas construídas com tempo a paciência. Foi assim que mudamos os
valores familiares, religiosos, políticos, econômicos, sentimentais,
artísticos, morais etc. Não vejo outra saída, exceto recobrarmos a
confiança em nosso poder de transformação, como criadores que somos.
Repito, no entanto, que para isso é preciso recuar da posição na qual
fomos postos, qual seja, a de indivíduos exclusivamente voltados para o
próprio umbigo. A mudança, portanto, exige que pensemos que o que todos
fazemos no dia-a-dia, em qualquer atividade profissional ou cultural, é
importante. O que cada um de nós faz ou diz importa, e importa muito! O
mundo se faz de pequenos gestos cotidianos e das grandes crenças que os
sustentam.
1. Nota do editor: Este texto foi editado pelo autor
a partir da transcrição de gravação de uma conferência por ele
proferida no âmbito do curso Juventude, Cultura e Cidadania, organizado
pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura), em parceria com o ISER (Instituto de Estudos da Religião).
Foram também incorporadas ao texto algumas das respostas do autor a
perguntas formuladas pelos jovens que participaram do curso. Texto
também publicado em Regina NOVAES e Paulo NABNUCHI, Juventude e
Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, São Paulo, ed.
Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, p. 75-88, e gentilmente
cedido para publicação em Vida Pastoral tanto pelo autor como por parte
da editora.
2. De agora em diante, evitarei colocar aspas nos
termos consumir, consumo, consumismo e consumidor para não sobrecarregar
o texto e cansar o leitor. Fique entendido, portanto, que, ao empregar
tais palavras, não estarei concordando com seu sentido corrente, mas
procurando criticá-lo.
3. Ao utilizar a expressão “prazeres físicos” não
estou sendo redundante. Os prazeres corporais são físicos e mentais.
Mas, enquanto os prazeres físicos se limitam ao corpo, os prazeres
sentimentais podem ser projetados em outros objetos ou sujeitos do mundo
ambiente. Especifico, ainda, que o limite entre o físico e o mental é
arbitrário, e depende do ângulo de observação e do objetivo pragmático
da investigação. Uma investigação neurofisiológica, por exemplo, tenderá
a dar relevo aos aspectos físicos dos sentimentos, como uma
investigação psicológica ou cultural tenderá a enfatizar a dimensão
mental dos mesmos eventos.
Jurandir Freire Costa** Formado em medicina, livre-docente em medicina social e psicanalista por profissão. Professor do Instituto de Medicina Social da UERJ. Autor de vários livros e artigos científicos.